quarta-feira, 6 de outubro de 2010

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Lassa princesa cigana de Panjane

Por: António Centeio

Lassa minha amiga cigana, tem um coração do «tamanho do mundo». É capaz de comprar quatro pares de sapatos para apenas usar um e dar os restantes a quem mais deles precisar. Os seus olhos «achinesados» e os seus longos e sedosos cabelos fazem dela uma linda mulher. Sabe como ninguém que o jasmim é a única substancia que faz do perfume uma das «maravilhas do mundo». Às vezes quando conversamos vejo as suas lágrimas a enrolarem-se no brilho dos seus olhos. Uma mulher cheia de contrastes.
Como princesa que é e cigana que se orgulha de ser contou-me que na «fé dos ciganos ainda continua a existir a lenda das lendas: «no passado tinham um rei, que guiava sabiamente o povo numa cidade maravilhosa da Índia chamada Sind. Ali o povo era muito feliz, até que hordas de muçulmanos expulsaram os ciganos, destruindo a sua cidade. Desde então foram obrigados a vaguear de uma nação para outra».
Gosta de caminhar sob as estrelas porque «se pode ler nelas o futuro e as estrelas possuem o filtro do amor para contarem coisas estranhas sobre os ciganos. Os ciganos sabem explicar as coisas nas quais crêem de uma forma muito singular».
A mistura de sangue que lhe corre nas veias: árabe, africano, cigano, indiano, europeu, fazem com que seja um «cocktail» completo. Mulher – criança, rebelde de espírito, doce de alma e imprevisível como uma animal selvagem..., assim é Lassa. Enigmática, um tanto misteriosa e até com uma certa dose de loucazinha, não deixa de ser gostosa.
Esta cigana adorava que o mundo fosse um navio para gostar de estar em cima do mastro para desfrutar de toda a visão do mar, da terra e do céu. Apegada demais à natureza gosta de sentir os seus pés pisarem terra firme, gosta de sentir as ondas batendo no seu corpo, adora respirar o ar puro das planícies, montanhas e vales, adora ainda mais estar longe da cidade e sentir de corpo e alma toda a beleza única e maravilhosa do campo e do mato.
Lassa, princesa cigana de Panjane – como lhe chamavam – nasceu próximo das longas matas onde a felicidade apertava os corações e onde diziam ter passado reis e rainhas. Uma terra que por muitos anos, no tempo dos descobridores europeus e dos primeiros comerciantes árabes, foi conhecida como a “Terra das Almas Perdidas” pelo zumbido arrepiante que a brisa vinda do rio faz, em sintonia com a poeira vermelha que se levantava.
A segunda de três irmãs, estudou sempre em colégios de freiras e sempre se lembra de andar pelas ruas e campos à vontade, a maior parte das vezes descalça, que era como gostava de andar, porque a harmonia singular que tudo tem com a natureza com o espírito, com a alma, com o próprio céu tão aberto e esplêndido lhe deu a sensação de que tudo é uma sintonia que emana das águas mornas e calmas do rio e da brisa leve e árida que sopra.
Panjane é uma cidade linda e calma onde todos se conhecem e onde com as irmãs, saía com uma espingarda de pressão de ar para andarem horas no «mato» à caça de pássaros que depois traziam para casa, não isentando que muitas vezes seus pais não tivessem que sair aflitos procurando-as com medo que lhes tivesse acontecido alguma coisa.
Numa vasta planície, próxima de um rio onde vivem juntos crocodilos e hipopótamos, foi o seu berço e o lugar onde nasceu para no quintal da sua casa passar os seus primeiros anos de infância.
É um lugar único onde erguem-se enormes serras e entre elas se estende um vale estreito onde o riozinho sereno corre, sempre manso. E por detrás destas serras, o sol nasce todos os dias para, mais tarde, dar a lugar a uma lua sempre tão vistosa e brilhante. Sobre o vale, meio solitário, os musgos verdes e as dunas de areia vermelha parecem sempre ter estado ali, tão forte é o seu domínio sobre o cenário completo
Sua mãe, mulher única e maravilhosa, ninguém é igual a ela: doce, forte, corajosa, decidida, com um coração enorme e uma alma que se poderia igualar a de uma santa; seu pai: foi um dos homens mais admiráveis que conheceu. Rebelde, aventureiro, frontal e bastante liberal mas ao mesmo tempo amoroso, justo e muito carinhoso.
Tudo o que hoje é deve ao que aprendeu com este homem que mais do que um pai foi um amigo, companheiro e professor da vida, que lhe deixou bem vincada descendência de cigana e europeia.
Da vida faz o lema “mais vale a lágrima da derrota do que vergonha de não ter lutado”. É uma mulher corajosa, porque só a água quente que salpica África lhe dá fulgor para continuar a lutar pelo que acredita para que todos juntos possam viver essa sintonia viciosa da junção da vida com a natureza.
Lassa é uma mulher que nasceu e cresceu com a liberdade dentro dela e talvez por isso seja como um passarinho sem gaiola que voa a qualquer momento.
Quer morrer na sua África que a viu nascer mesmo sabendo que a vida pode acabar de um momento para o outro como a tempestade que não avisa quando vem, mas não quer morrer enquanto viverem os seus sonhos.

sábado, 18 de setembro de 2010

Vendedor de sonhos

Por: António Centeio

Bernardino encontrou um bocado de terreno – por acaso rectangular, que lhe deu a oportunidade de ter nova vida e realizar o seu maior sonho, que já vinha dos tempos da escola.

Entalado se encontrava entre prédios, de ambos os lados e separados por uma longa e moderna avenida. Este bocado de terra, propriedade de um velho especulador que pensava em vende-lo a algum construtor ávido em sacar uns cobres aos futuros compradores permitiu a expansão do negócio de quem em criança já tinha queda para o negócio.

Ainda andava na escola e já trocava lápis por esferográficas, sebentas por livros ou rebuçados por explicações nas áreas em que os colegas eram menos entendidos. A sua inteligência e capacidade de captação faziam dela um aluno com capacidades acima da média. Soube, sem ninguém lhe dizer ou ensinar que explorando este dom natural poderia usufruir de proveitos em seu beneficio.

Desde menino que dizia a todos que o rodeavam «quando for homem vou ser um grande comerciante». Ao contrário dos outros, terminado os trabalhos da escola ia logo de seguida para a mercearia do Bonifácio tentando entender como este trabalhava com o «Deve» e «Haver» coisa, que em abono da verdade, não levou muito tempo a descobrir que uma das parcelas, tendo uma certa forma, queria dizer que o sobrante era lucro, logo: «meter ao bolso ou para aplicação futura».

O seu mestre e confidente ensinava-lhe as artes do ofício porque via no pequeno Bernardino qualquer coisa diferente dos outros.

Ia à livraria da velha Carmelita em busca de livros que espantava os mais velhos. Segundo os boquiabertos, só serviam para os «manga-de-alpaca». Pouco se importava para lhes responder de seguida que o «nos livros é que se aprende. Pobre do homem que não gosta de ler livros». Pasmavam-se com as respostas do pequenote, que de rabo alçado metia o que tinha procurado, debaixo do braço, seguindo a caminho da sua velha casa, situada algures no cimo de uma íngreme rua; a meio encontrava-se a “Pharmácia dos Vidais”. Nesta casa de higiene e saúde, todas as noites, depois do jantar, se reuniam para a cavaqueira habitual os reformados e maldizentes.

Fez-se homem e nunca se esqueceu do que aprendeu na loja do vizinho como no passar do tempo porque as conversas de dinheiro tem uma certa magia. O ter pouco e duplicá-lo era algo de difícil mas não impossível. Bastava que houvesse uma relação de entendimento ou uma astúcia a puxar para o manhoso.

Uma dos princípios que aprendeu, mas que nunca esqueceu é que em termos de negócios não pode haver sentimentos. Isto não quer dizer que exista o direito de passar por cima de terceiros. Tal coisa nem pensar porque o destino prega partidas e o coração do Bernardino era para ganhar dinheiro e dos ganhos repartir pelos mais carenciados. Assim seria e assim continua a ser. No último mês do ano, nunca se esquece de ir visitar as crianças a quem a sorte passou ao lado.

Seria neste bocado de terreno, depois de feito um «estudo de mercado» à maneira de Bernardino que concluiu facilmente: pelo movimento de pessoas que circulam diariamente na avenida; os residentes como ainda os visitantes, o chamariz para o inicio do seu sonho era, nem mais nem menos, que a instalação de um “Stand de automóveis usados”. Bem o pensou bem o fez.

Mesmo sendo provisório, isto é, enquanto o especulador não vendesse, o terreno, podia vender alguns carros em segunda-mão e fazer sonhar quem não os pode ter. Do mais caro ao mais barato, de tudo um pouco o Bernardino lá tinha para vender. A quem quisesse comprar e dinheiro não tivesse, o negociante tinha conhecimento quem podia emprestar sem algum risco correr para quem o vendia.

O tempo foi seu aliado e com a sua astúcia, nem cinco anos passara, altura em que foi vendido o terreno, Bernardino tornou-se o mais conceituado vendedor da cidade como aquele a quem permitia que os clientes pudessem sentar-se dentro dos espadas mesmo sabendo que na verdade poucos teriam dinheiro para comprar o melhor “carro do mundo”.

Que conste, nunca enganou ninguém. Sabido é também a garantia dos veículos vendidos. Só acaba quando tudo tem que acabar; noutras palavras: se o condutor estimar aquilo que é seu, o mesmo só começa a dar problemas quando – como nós – a vida da coisa começa a caminhar para o fim. Tudo se cansa e tudo acaba, até as peças dos automóveis.

Hoje, o miúdo que se interessava pelo «Deve» e «Haver» é dono do rés-do-chão onde se situa o prédio que em tempos passados mais não era do que um terreno descampado.

Não lhe bastasse, de vendedor de automóveis passou a sócio maioritário da firma que importa os melhores carros do mundo para a região, carros estes, que seguindo a óptica de quem os vende, não está ao acesso de qualquer gato-pingado.

Porque o seu lado humano nunca o abandonou nem a frieza dos números fez com que se esquecesse dos outros; muito menos das crianças que nada tem, Bernardino tira anualmente dos lucros uma grande fatia para que em partes iguais seja distribuída pelos vários lares de crianças carenciadas e abandonadas das redondezas. Ainda se dá ao luxo na noite de Natal, vestir-se de velho barbudo. Com um saco às costas distribui prendas como se fosse aquele que as crianças tanto adoram. Até no ajudar os outros sabe vender sonhos.

terça-feira, 22 de junho de 2010

PRÓXIMO DO AZUL TUDO É UMA ETERNIDADE

Por: António Centeio

Eram nove e quinze quando cheguei à estação de comboios. Tirei o bilhete com destino à Gare do Oriente. Quando me encontrava no cais do embarque olhei para o céu. Estava carregado de nuvens escuras. O horizonte deixou-me triste. Deixava para trás toda uma vida cheia de recordações. A minha voz interior dizia-me que jamais sentiria a essência dos momentos sublimes até aqui vividos como a minha alma sentia um vazio no abandono das suas raízes.
Iniciada a viagem, os meus olhos choraram porque só eles souberam transmitir à mente a grandeza e perfeição de beleza da extensa planície ribatejana. Apenas o meu coração pulava de alegria. Sabia aquilo que o esperava – o momento do encontro. Tão poucos quilómetros de distância mas que se tornavam penosos. Como o mundo é pequeno!
À muito que tinha conhecido Ana. Falávamos várias vezes durante o dia dos nossos problemas. Aos poucos fomos ganhando uma profunda amizade. Conhecia a cidade como a «curva das canas» porque, quando da sua infância, passava pela mesma diáriamente a caminho da escola. Bem cedo foi viver para Lisboa. O que aprendeu, fez com que me ensinasse o significado «estamos em on–line» (era a palavra mágica para iniciarmos a nossa intimidade). Todos os momentos livres que tínhamos eram para estarmos em «on» – Queríamos mais, sempre mais. Ensinou-me a entrar no mundo do «mirc» como saber quem pode estar por detrás de um «nick» ou ouvir a sua voz no «icq».
Ana sabia mais do que ninguém de que “ tudo se relaciona com o mundo das ideias para podermos estabelecer dois planos. Um deles processado directamente com a actividade literária. O outro era a teoria e a ideia, porque entendia que a ciência dos princípios é a ciência dos que investigam as causas ou as razões últimas das coisas”. Eram estes princípios filosóficos que a levavam a ter pensamentos profundos para que se inquietasse quando raciocinava, levando-a assim a estar sempre desconfiada para com o seu «mestre» como me chamava.
Usávamos muito para ‘discussão’ o «Livro de Sofia». Um longo livro que acabou por nos dar a hipótese de fazermos análises profundas sempre que nos encontrávamos.

Ana, sabia que pela sua falta de confiança em mim (por ser mais velho do que ela na idade) e ao contrário do que julgava, aumentava entre nós dois uma misteriosa energia que nos unia. “Alturas há, que até estranhamos os nossos próprios instintos”. Até «Dudu» o seu gatinho de estimação nos avisava para “estarmos preparados para as supresas da vida”.
“Devemos estar preparados para as supresas da vida....”. Ana sabia que «cada um» deve buscar o seu tesouro e que o encontre. Os sinais farão o resto, porque “todos os dias são iguais e, as pessoas deixam de perceber as coisas boas que aparecem nas suas vidas porque não sabem perceber o sinal quando o Sol cruza o Céu” ou quando a sua «Outra Parte» lhe confia toda a “sua vida para que compreenda que nada tem a esconder” desejando apenas a “compensação da total entrega”. Coisas que, Ana, tinha dificuldade em enxergar.
Um dia viria a saber que a amizade que íamos cimentando quando teclávamos ou quando percorríamos a grande avenida, que secretamente o “brilho da bola do Céu” estava fazendo – sem que nós soubéssemos – fórmulas secretas para “que as nossas almas mais tarde ou mais cedo se aconchegassem”.
Das quatro estações, guardamos para a mais fria aquela que seria o início de uma vida. Só Ana sabia dizer aquelas palavras que entram dentro de nós e que nos dão arrepios – não fosse ela poeta.
Meu Deus, quanto é difícil iniciar uma nova vida deixando para trás toda uma outra que foi construída palmo a palmo?
Dizia-me sempre “ sê racional e nunca penses com o coração, porque este é traiçoeiro”. Nunca gostei de racionalismo. Segui sempre o meu coração e a minha intuição. Nunca me enganaram. Construímos aos poucos o «nosso mundo» num paraíso voltado para o mar. Nas manhãs domingueiras, sentávamo-nos os dois na varanda da nossa casa, horas e horas, vendo a força do mar. Sentíamos no Vento aquilo que só o mar sabe transmitir. Do seu interior «vinham» vozes estranhas que nos diziam para vivermos o nosso dia como fosse o último. Era um segredo entre nós três. A magia da Lua Cheia encantava as nossas almas ao ponto de nos embalar para o infinito. Na elevação, a força do vento e do amor faziam com que soubéssemos que próximo do azul tudo é uma eternidade.
Nasceu numa noite com a essência do Quarto Crescente para que jamais fosse esquecida. Até os passarinhos louvaram com o seu chilrear o nascimento do nosso fruto. Os grilos juntaram-se em coro para dar as boas vindas a quem tinha chegado.
Para que as flores que rodeavam a nossa casa não se sentissem tristes demos-lhe o nome de uma delas. Jamais estas deixaram de fazer parte da vida de nós. As margaridas tinham outra vida quando viam a imagem celestial que as acariciava diáriamente. A Alma do Mundo aceitou nos mistérios da vida a nossa entrega. À medida que as luas passavam Margarida, transformava-se numa pessoa com uma enorme compaixão. Os olhos dos nossos olhos brilhavam para a vida.
Naquele dia as gaivotas estavam agitadas. O mar estava aborrecido. As ondas batiam com raiva nas rochas. As nuvens faziam no céu símbolos que pareciam um chamamento para os nossos olhos. Não compreendíamos o que as mensagens nos queriam transmitir. Quando menos esperávamos, do céu ouvimos o bater de dois «trovões». Neste momento, Ana, sentiu uma dor profunda no seu coração. Voltando-se para mim com as lágrimas correndo pela sua face e uns olhos que reflectiam amargura apenas teve força para me dizer “ querido, tiraram-nos algo. Sinto uma enorme dor dentro de mim” para cair de seguida completamente pálida.
A Alma do Mundo tinha-nos levado o fruto do nosso amor. Só neste momento descobrimos o que queriam dizer as vozes interiores quando nos diziam para “ vivermos o nosso dia como fosse o último”.
Numa manhã fria, enquanto o vento abanava os ciprestes que iriam rodear a morada da Margarida, o vento fluiu para nos encaminhar para o silêncio das paredes frias que nos iriam acompanhar para o resto da nossa vida tirando a razão de viver a dois seres que se amavam para que um dia fossem recordados por alguém que foi feito com tanto amor.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Sebastião, sequioso por dinheiro

Por: António Centeio

Sebastião é trabalhador mas um sequioso por dinheiro. Gosta mais de dinheiro de que trabalhar mas a vida passou-lhe a perna obrigando-o a trabalhar mais do que querer dinheiro. Se não trabalhar não tem dinheiro foi a conclusão que tirou depois de feitas as contas. Não sabe se por causa do dinheiro se por causa do trabalho.
Seja como for, trabalha que se farta como um “danado” para que nada falte a quem lhe dá algum a ganhar. Faça calor faça frio, até às tantas da madrugada, o tempo é passado na cozedura do pão que a partir das seis da manhã tem que distribuir porta a porta na sua velha carripana, que por fazer o mesmo trajecto todos os dias até parece que já sabe o caminho. Ainda o Sol está do “lado de lá de Espanha” e as buzinadelas já se ouvem por tudo que é sítio.
As suas clientes têm no barulho do apito um despertador que não engana ninguém, tal é a confiança que depositam no Sebastião. Sabem que o velho e barrigudo padeiro desce a rua, metendo o pão que acabou de sair há pouco tempo do forno em sacos que foram colocados nos puxadores das portas no início da noite anterior.
Todos os dias Sebastião vive da rotina para quando a acabar, passe pela “Tasca do Fausto” a fim de molhar o bico porque a noite foi dura e as receitas poucas. As suas clientes, pagam-lhe, quando pagam, ao fim do mês, depois do “homem do pão” deixar no saco que recolheu a farinha cozida, um bocado de papel pardo com as garatujas do valor. Por norma nunca se engana a favor de quem lhe vai pagar. Se houver reclamações «os acertos são feitos na altura da discussão». Como por norma é sempre uma questão de mais um ou menos um “papo-seco” a coisa não se complica por via de tal. O prejuízo não é por ai além. A ser, que não é, tira-se o prejuízo na farinha para aumentar na sêmea.
O pior que lhe aconteceu foi quando a D. Miquelina estava à sua espera, num dia ventoso, reclamando dos custos para o acusar de não lhe vender a mercadoria. «Não pode ser! Tenho a certeza absoluta que lhe deixo todos as manhãs o seu pãozinho no saco. Juro-lhe por tudo que é santo que nunca lhe deixei sem o pão. Não basta a desgraça que tem em casa por causa da maldita doença de seu marido quanto mais agora lhe tirar um ou dois pãezinhos. Nem pense numa coisa destas! Seria incapaz de tal coisa!». A compradora mais antiga das redondezas afiançava-lhe que «já a alguns dias tinha notado que o saco tinha desaparecido do sitio quanto mais o pão fresco que nunca lhe via a cor. Evaporou-se como o pão que nunca lá esteve. Tive que o substituir por um daqueles que nos dão nos supermercados! Meu rico “saquinho” que tantas recordações tinha dele!»
Conversas daqui, averiguações dacolá, o velho padeiro (careca de todo por causa do calor do forno e das gorduras. Quando da existência de couro cabelo passava com as mãos todas gordurosas pelos fios prateados que ainda lhes restava) jurou-lhe pela «saúde dos filhos» que nunca os teve, conseguir descobrir a razão da reclamação.
«Descanse minha amiga que lhe provarei que não sou o falacioso que julga que eu seja. Dê-me meia dúzia de dias. Mostrar-lhe-ei o contrário». Assim foi.
Passado alguns dias, após acusado do que não fez, com a agravante da possibilidade de vir a ser denunciado publicamente pela vitima do acontecido, daquilo que nunca aconteceu, podendo a levá-lo a que a sua sequiosidade pelo sustento do trabalho fosse diminuir ou a sua imagem descesse pela vala da má fama depois da distribuição e acontecido naquela rua, que por coincidência era a que tinha os melhores clientes.
Estacionou o seu veículo de “Distribuição e Venda de Pão” escondido dos olhares mais curiosos e meteu-se na travessa que passa entre a comprida parede da velha igreja da terra e o terreno baldio que confronta com a casa de fé.
Quase andou para morrer, por não acreditar no que estava a ver, quando viu a “vizinha de frente” da D. Miquelina em pezinhos de lã a sair de sua casa para atravessar a rua. Pouco depois, que nem cinco segundos levou, segundo o vigia, a dita trazia nas mãos o saco de quem se tinha queixado. «Raios me partam, se estou a ver aquilo em que nem quero acreditar?» Estava eufórico de todo pelo acontecido como ao mesmo tempo duvidada daquilo que dizia para si próprio “isto vai ser uma bomba, aí se vai!”
Voltou-se para o pelourinho que repousava no adro da capela e disse: «Isto que vi não pode ser verdade! Amanhã quando contar isto à D. Miquelina vai ser um falatório ou vai cair o “Carmo e a Trindade”». Nas “acusações e defesas” o povo aglomerou-se dando razões a quem acusava. Quando a novidade chegou ao mercado da terra já as coisas iam deturpadas de tal forma que quem «roubava todos os dias o pão à D. Miquelina» devia ser a mesma pessoa que «roubava as flores do interior da igreja e em tempos passados arrombou a caixa de esmolas de S. António». Se não foi, ninguém provou, passou a ser do que estava a ser dito como de outras que seriam ditas. Foram cenas que ainda hoje se fala pelas redondezas.
A vizinha na presença do vendedor e compradora desmentiu tudo mas os argumentos de Sebastião e de uma testemunha ocular, que só existia nas palavras do acusador, foram suficientes para quem desviava o que não era seu confessasse envergonhada, e toda lacrimosa, que a “mudança de sítio” se ficou a «dever às suas dificuldades» como a não ser capaz de sustentar os vícios do calmeirão do filho que «teima em não querer trabalhar e em querer que lhe dê o que não tenho».
Se Sebastião era tido até à data como um «homem sério e trabalhador» a partir do sucedido passou a ser o «melhor padeiro de tudo quanto é sitio».

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Daniel, o amigo dos pássaros
Por: António Centeio
Daniel é um miúdo desinquieto que mais parece uma enguia. Por mais que ralhem pior faz. Tem meia dúzia e poucos anos mas já sabe mais que alguns adultos. Nos dias longos, arma-se de espadachim, e vai daí, com um bocado de pau a imitar uma cruz, parece um espadachim na baixeza do mar. Meteu na cabeça que as ondas têm medo dele, que em vez de lutar com espécies de gente como ele guerreia com o mar. Não deixa de ser mau rapaz. Tem apenas o feitio dele.
A mãe tem um pequeno bar à beira-mar onde vende um pouco de tudo e mais alguma coisa, porque o marido em devido tempo, marimbou-se para ela e para o filho por causa de uma descoberta que teve com uma matrafona qualquer que lhe soube dar a volta, pouco se importando dos estragos que deixou para trás como de quem ia sofrer com as consequências.
Então não teve outro remédio que pedir licença ao cabo-de-mar que lhe permitisse abrir a barraquita para sustento do seu filho esguio, pedindo em troca a quem manda nas bordas do mar, que tapasse os olhos ao que os homens da capital deliberam, de maneira a que não tivesse de ter um ou dois miúdos crescidos para fazerem de nadador-salvador caso contrário, os trocos ganhos ao fim do dia levavam um corte que mal daria para os ganhos da casa e sustento do filho, para além de ter que pagar os estragos que este entendia fazer quando os veraneantes andavam de férias.
As boladas que o entorpecido mandava de tempos a tempos para cima dos que descansavam, depois de uns meses a trabalhar, acabava sempre nalguma geladeira partida ou pratos, que tinham no seu interior papas para os bebés, voltados de pernas para o ar.
Tudo acabava num valente ralhete de quem era dono do atingido ou em meia dúzia de tabefes, quando não dava origem a algumas correrias pela areia, de maneira que o adulto desse pela grossa a quem fez os estragos.
Como quem não quer a coisa, ou após reconhecido o descuido de algum banhista, a espaços de tempo, lá surripiava um telemóvel, que a coisa até têm uns jogitos, e sempre, lhe dava a graça de falar com desconhecidos. Se o ouvinte lhe perguntasse quem era ou como estava em posse de tal objecto a resposta algarviada era sempre um esmerado conselho «Tem alguma coisa a ver com isso?».
Se farto de falar, ou de lhe cortarem o pio, o mesmo embarcava logo, sem destino marcado, nas águas do oceano.
Fora disto, Daniel é um pacato cachopo que nos dias mais escuros fica sempre nostálgico, fazendo grandes caminhadas junto ao rebentar das ondas.
Tantas, que às vezes atravessa o areal de uma ponta à outra. Em vez de olhar no horizontal olha para a areia, dando pontapés, como que, de debaixo desta, viesse algum telemóvel desaparecido ou amêijoa.
Com o boné metido na cabeça, de pala para trás, sempre que ouve o barulho de alguma gaivota, branca ou cinzenta, abranda o passo para apanhar a mais desprevenida. Tentativas levadas pelo Vento mas que fazem com que nunca desmereça. Um dia satisfez a vontade. Quando repetia as passadas e os hábitos, houve uma que o esperava, nem queria acreditar.
A meia esguelha, o pássaro olhava-o de frente, levando que perguntasse a si próprio, se era verdade o que estava vendo. O raio do bicho, nem uma nem duas. Apenas tinha o corpo meio inclinado como um barco quando assente na calha. Apanhou-a antes que levantasse asa.
Foi quando viu que a pobre ave tinha uma asa partida. Levou-a logo para o «Bar do Cachucho» para mostrar à mãe e lhe pedir, que a dita passasse a fazer parte do património. Sempre chamava mais clientes e curiosos. «As crianças vão querer vê-la, mãe! Sempre compram mais uns geladitos e os trocos aumentam aí na gaveta do cascalho».
«Nem penses meu marafado duma figa! És tonto ou quê? Os clientes até iam pensar que a barraca é algum galinheiro. Põe-te a andar daqui para fora com a porcaria da gaivota. Não a quero ver aqui, nem a ti».
Durante dois dias, a pobre alma percorreu a praia e arredores em busca do desalmado filho que não lhe dava sossego nenhum, pregando-lhe agora uma partida, já que nem lhe disse para onde foi como das razões da ausência.
Não bastava já o «desmiolado do fulano lisboeta ter aumentado os impostos, que arranjou a maneira dos clientes, em vez de comprarem alguma coisa, só se queixarem do aumento e da crise» quanto mais agora lhe desaparecer o miúdo.
Quando se apresentou na esquadra contando o sucedido, os policias em vez de a animarem deram todos numa risota e galhofada que a pobre mulher já não sabia se «estava tonta ou se a estavam a fazer de maluca».
Todos conheciam o raio do rapaz, que de vez em quando teimava em fazer partidas a quem descansava, obrigando os agentes a fazer com que os visitantes desistissem da queixa, senão era uma trabalheira preencher o auto, visto que o bedelho era menor e daqui, os incómodos que daria como os transtornos que causaria aos adultos. Tudo lá se resolvia amigavelmente, sem ninguém ser prejudicado, para acabar tudo em família, depois de aplicados alguns açoites no moço.
Mas quando a «mulher da tasca» como lhe chamam, os ameaçou que ia imediatamente fazer queixa aos superiores, lá se propuseram fazer uma busca ao fugitivo. Levaram mais três dias a encontrá-lo. Estava encaixado dentro de uma gruta, a caminho do início do Barlavento.
Dormia como uma pedra, tendo a seu lado a gaivota, que estava «tesa como um carapau» assim disse o mais graduado, tendo a mãe pedido desculpa de tais transtornos, mas o «corno do cachopo não ganha juízo de maneira alguma».

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A Herança de Ana Margarida

Romance

I

Namoraram muitos anos, porque entendiam que se deviam conhecer muito bem para que depois do casamento tudo decorresse em perfeita harmonia. Falavam de outros casais que se davam tão bem mas com o passar dos anos os seus casamentos e dos problemas que iam surgindo desmoronavam-se ao mínimo toque com uma pirâmide de dominó. Ao mais pequeno conflito tudo se desfazia.
Durante o namoro, Celestino e Joaquina, sonharam e projectaram como seria a vida deles como tudo que gostariam de ter. Uma das coisas que mais faziam questão era a casa em que iriam viver.
Deveria ter muitas divisões, ser solarenga, ter uma boa vista, bem situada, de fácil acesso e situada numa zona bem central. O problema era o preço que uma casa assim poderia custar, mesmo que sendo um grande proprietário e tendo bens acima da média, o que lhes dava uma vida confortável, também tinham que pensar que no futuro, viria um filho ou uma filha e os encargos passariam a ser outros.
Das poupanças que já tinha acumulado durante os poucos anos que exercia a actividade de proprietário para além da ajuda dos bens que herdou de seus pais, que sempre lhe disseram sempre lhe disseram que quando cassasse lhes ofereceria a casa para onde fosse viver. Tudo indicava que o futuro não seria cinzento.

A avenida da Implantação da República é a mais longa e larga da cidade. Feita numa época em que o crescimento e desenvolvimento económico apareceram, o arquitecto que a planeou, apercebeu-se que para tudo fazer sentido e se enquadrar na nova zona da cidade, teria que ser construída dentro de um certo planeamento urbanístico. O curto tempo se encarregou de provar que a sua teoria estava correcta.

Dezenas e dezenas de prédios com vários pisos foram construídas ao longo da Implantação da República. Todos tinham nos rés-do-chão enormes galerias com espaços comerciais que fizeram dela a avenida mais movimentada com os fluxos de pessoas numa louca correria e num vaivém que mais parecia ser uma cidade americana, daquelas que se vêem nos filmes, do que uma cidade da província, mesmo estando bem perto de Lisboa como servida de vias que num curto tempo levaria as pessoas a deslocarem-se a qualquer parte do país num instante com a maior das facilidades. Foi este rápido progresso, que o arquitecto se apercebeu, pois sabia que a localização da cidade que crescia de dia e de noite, mais tarde ou mais cedo seria um nó de trânsito que a ligaria à A-1 e a A-23 e por consequência a outras vias rápidas. As galerias que cercavam toda a avenida num instante se tornaram no ex-libris da cidade.

Composta de uma babilónia de comércio, na maior cidade do pais, de tudo um pouco havia. Lojas de roupas que representavam as melhores marcas, supermercados, lojas de informáticas, dezenas de cafés e bares, sapatarias, livrarias, farmácias, perfumaria, bancos, joalharias e outras, que todas juntas transformaram a avenida numa zona de consumismo. Até as caixas de Multibanco rebentavam pelas costuras de tanto serem utilizadas.
Os milhares de pessoas que aqui viviam, de tudo tinham à mão como as suas habitações de um momento para o outro especularam nos preços que o mais pacato cidadão interessado em comprar aqui um pequeno andar tinha que pagar uma fortuna.

Para completar e valorizar esta parte da zona nova da cidade, a avenida viu nascer no seu meio o mais moderno centro comercial. Esta enorme árvore de betão armado comercializava no seu interior de tudo um pouco, superando no seu conjunto todas as actividade e mais algumas das que já existiam nas proximidades
Feito e projectado a pensar nos fins do século XXI, tudo foi pensado ao pormenor, onde a segurança e vigilância era factor predominante. O seu autor, um famoso arquitecto e professor universitário, tinha a longa visão de que o futuro seria uma perfeita mutação – não fosse um profundo admirador da obra do Marquês de Pombal.
Tudo foi planeado ao mínimo pormenor. O suficiente para este edifício com milhares de metros quadrados ser invejado pelos responsáveis das grandes cidades, já que o movimento e alterações que originaram na cidade de província, modificou toda a região. Afinal a Implantação da República era qualquer coisa que até nem parecia deste mundo.
Ladeada de centenas de plátanos, quer de um lado quer de outro, com as suas enormes ramagens dão uma visão que quase torna esta artéria numa floresta, tal é a sua beleza. No Verão, os passarinhos aconchegam-se no seus ramos, depois de um dia de cansaço e de tanto terem voado em busca de alimento.
Logo ao amanhecer do dia os milhares e milhares de passarinhos que na noite dormiram protegidos pelas estrelas e pela lua iniciam o seu percurso habitual sem nunca perderem o norte de onde tinham saído para com a chegada do crepúsculo voltarem, cujo barulho que fazem quando se colocam nos locais demarcados fazendo um alvoroço com os seus chilreares que é a alegria dos petizes, tendo estes o prazer de poder assistir a este prenda da natureza.
Nos passeios, os bancos recebem a sombra e a fresquidão que o calor tira a quem circula pela mesma e que consola quem os utiliza para poder ver todo o rebuliço das pessoas que andam nos dois sentidos.
Depois o cheiro das flores plantadas em pequenos canteiros perfuma com o seu odor toda a extensão fazendo com que até as borboletas sobrevoam baixinho, ou quase rentinho das cabeças de quem está sentado.
Nas noites de Verão, é ver as pessoas nas suas janelas recebendo de graça o fresco da noite enquanto ao mesmo tempo vêem quem anda caminhando lentamente apreciando as mais variadas exposições de tanta montra espalhada.
Numa tarde de um fim-de-semana propício a um passeio de lazer, ambos foram procurar onde encontrar a casa que seria o seu poiso para o resto da vida. Foi na República o local escolhido.
Dois andares no mesmo piso de um prédio foram comprados. Não por necessidade mas por uma questão de um dia o fruto do casamento viver próximo deles. Cada um tinha: três quartos, duas casas de banho, duas salas de estar, cozinhas, dispensas, dois sótãos e duas garagens. Para as noites frias o aquecimento central dava o calor que o frio roubava.
Com duas frentes o prédio tornava-se solarengo já que apanhava Sol tanto pela frente como por detrás, o que fazia – como tinha dito o pai de Celestino - um prédio saudável e inimigo das doenças, já que a humidade seria impossível um dia de se instalar no interior dos dois andares, assim como em todo o prédio.
Bem localizados, com um bela vista e mesmo na frente do Centro Comercial, para quem ia iniciar uma nova vida, melhor não podia ter sido encontrado.

II

Quando Ana Margarida nasceu, decorria o sétimo mês da década de sessenta do século XX. Foi-lhe dado o melhor quarto que mais tarde lhe seria de grande utilidade.
Nesta altura, Joaquina, fez questão de chegar a um acordo com Celestino para que durante um ano, pudesse dormir no quarto da Ana Margarida para que esta se habituasse ao seu quarto e ao espaço que seria sempre seu. Aceitou logo a ideia porque já era uma tradição na sua família haver um quarto próprio para quem nascia. Defendia como pai e homem de tradições, que esta forma era a melhor para se educar uma criança, dando-lhe o seu espaço e a sua intimidade. Foi assim que cresceu e viveu.
O quarto foi pintado de branco com quadros nas paredes nos quais se podiam ver pequenas figuras de animais. Mobilado com uma cama ao centro para a mãe poder acompanhar o crescimento da filha enquanto bebé, um berço em madeira castanha com pequenas e simples ripinhas, colocado a um canto do quarto, um armário da mesma cor e igual feitio do berço.
O feitio do berço não era luxuoso mas de uma enorme simplicidade. Uma tábua rectangular com a altura aproximada de um metro por setenta centímetros. Na parte superior da cabeceira tinha figuras de dois meninos brincando no meio de flores vendo-se o mesmo na tábua oposta.
Ao meio, segurado por duas ripas fortes estavam as ripinhas, que num conjunto de uma obra-prima de torneiro, não existia quaisquer arestas para que não houvesse qualquer perigo de ferimentos. Eram nos arredondamentos das fasquias que estava a beleza do berço.
Por cima do berço existia uma pequenina caixa com o formato de um palhaço que emitia melodias suaves.
Na mesa-de-cabeceira da mãe, encontrava-se uma pequena boneca electrónica para alertar a mãe quando a criança chorava com extensões espalhadas por todas as divisões. Mais ao lado uma pequena cómoda para guardar a roupa infantil; uma banheira apropriada para o banho e mudanças de roupa.
Em cima da cómoda estava uma pequena cesta forrada com pano em rosa onde continha os produtos de higiene. Pelo quarto encontrava-se vários brinquedos, como peluches, bonecas e outros. Pela janela com cortinados em tons de rosa a condizer com a colcha da mãe e do berço da criança, entrava o Sol da manhã que iluminava todo o espaço infantil.
Até aos três anos, foi um bebé doce e terno. Nunca incomodou nos sonos nocturnos quem deitada estava a seu lado. O único problema era o come, tinha uma enorme alergia a tudo que tivesse que ser metido na boca. Sua mãe chorava por não ver a sua filha a querer comer, tinha que cantar canções entoadas num som que ela própria nem sabia como cantar, mas que, mesmo fanhosa ia conseguindo que comesse. Foi assim num longo tormento que viu que o esforço deu resultado.
Dos três aos seis anos, acabou o tormento para começar as pequenas doenças: gripes, dores de dentes, papeira, rebela, varicela e mais algumas que se renovavam sem pedir licença, fazendo com que o médico, amigo da família, raro era o mês que não ia visitar a sua mais nova cliente.
Tudo começou a normalizar a partir dos sete, altura em que Ana Margarida começou a interessar-se por tudo que a rodeava como da origem das coisas e dos porquês. Valeu à mãe, a ama que sempre acompanhou o crescimento da sua filha como pela experiência que tinha com crianças. Era uma excelente protectora de crianças. Tanto que, quando a sua aluna foi para o ensino obrigatório, quase tanto sabia como as que andaram no pré-primário.
Custava todos os meses uma pequena fortuna ao casal. Valeu-lhes ter rendimentos para suportar as despesas da ama da filha. Da fortuna que Celestino tinha herdado, grande parte eram enormes fazendas, e terrenos, espalhadas por todo o Ribatejo e algumas no Alentejo. A Herdade, talvez a maior de todas, situava-se nas margens do Tejo com milhares de hectares. A terra era de tão boa qualidade, que para além de uma enorme vinha, até centenas de cabeça de gado lá se criava.
No Ribatejo, as plantações com centenas hectares de videiras davam a seiva que fazia o vinho num dos melhores produzidos na região. Ainda a vindima não tinha começado e já os armazenistas e comissionistas rondavam a casa agrícola, solicitando-lhe que não vendesse o vinho a mais ninguém.
Astuto e manhoso que era para o negócio, conhecedor do principio da procura e da oferta para lhes juntar a qualidade, dava-se ao luxo de nunca se comprometer com ninguém para depois de o mosto estar nas pipas, então ir, como quem não quer a coisa, falar com quem já o tinha visitado. Aquele que lhe pagasse melhor e a pronto seria aquele que ficaria com o néctar que tão procurado era.
No Alentejo, onde de sete em sete anos, a cortiça tirada dava rios de dinheiro, era: todo aplicado em contas a prazos, na compra de apartamentos para depois serem alugados por períodos curtos mas com mensalidades caríssimas. Só no Algarve, tinha perto de uma dúzia que foram comprados a preços de saldo para depois darem milhares de Euros de lucro nos três meses mais quentes do ano.
Num ano que a Bolsa de Valores andava a atravessar dias cinzentos, fez um negócio de intermediário, que após concluído, meteu na sua conta centenas de milhares de Euros de comissão. Tantos que, um quarto foi investido numa nova carteira de acções. Tinha dias que os Deuses da Fortuna estavam com ele. Num espaço curto de meses, quadruplicou tudo o que tinha investido.
Pelas acções adquiridas, passou a ter assento em vários conselhos de administração de empresas que também passaram a ser sua. Das que vendeu aplicou os valores nos mais variados bancos para reiniciarem o antigo provérbio «dinheiro faz dinheiro».
O seu maior desgosto, que não dizia a ninguém, era de não lhe ter nascido um filho com faro para o negócio como ele. Se tivesse nascido, era o homem mais feliz.
Nunca deixou de gostar da filha, mesmo quando nas profundezas do seu ser, o seu desejo seria um rapaz.
Não que desconfiasse da filha um dia tomar posse do seu património, mas de quem um dia lhe entraria pela casa adentro pedindo a mão de sua filha.

III

A partir dos dez e até aos quinze anos, depois de Ana Margarida vir das aulas do secundário e de ter feito os trabalhos, levava as tardes a ver quem entrava e saia do enorme edifício que se situava mesmo de frente do seu quarto. Da janela do seu quarto podia ver a todo o momento a grande azafama de quem entrava e saía do mais moderno centro comercial.
Conseguiu aprender a decifrar pelos movimentos das pessoas, pelas horas de mais ou menor movimento, pelos embrulhos enfeitados nas mãos, dos embrulinhos que davam a entender que eram prendas especiais que tipo de pessoas que eram.
Nas tardes de Verão quando abria a janela do seu quarto escutava as conversas das pessoas que passavam e depois numa metamorfose recapitulava à sua maneira para de seguida fazer uma análise e concluir o seu pensamento, que por acaso até era certo, isto é: raramente se enganava.
Concluiu então: que as pessoas que se vestiam de determinada maneira, eram de uma camada social; pelo andar, das possibilidades económicas e que pela qualidade da roupa que vestiam sabia as profissões.
Segundo a estatística que fez durante anos, garantia a quem a queria ouvir, que noventa por cento era garantido.
De tão pouco sair de casa, a sua cor era desmaiada; mais parecia um anjo celestial de tão branca ser. Coisa que não agradava a sua mãe que insistia constantemente que passeasse com as amigas e que fosse com elas ver os monumentos, que arranjasse amizades masculinas e que não estivesse enterrada à janela todos os dias.

- A cidade tem tanta coisa porque não és como as outras raparigas? Dizia-lhe a mãe.
- Mãe, se temos mesmo em frente da nossa casa o maior centro comercial da cidade e se todas as pessoas adoram aqui vir porque não tem o nosso privilégio, porque razão hei-de sair? Respondia.

A maior preocupação da mãe era quando ia e vinha para a escola. Situada ao fundo da avenida, a filha tinha que atravessar algumas ruas que embocavam na longa artéria.
Mas orgulhava-se de ter uma filha sossegada e estudiosa para além de moça exemplar. A sua pombinha, como lhe chamava, era um amor de filha, assim dizia para as amigas.
Tanto se fartou de ouvir a mãe que quando chegou aos dezasseis anos começou a frequentar o complexo comercial, que até tinha na parede frontal do edifício, as cores que tanto adorava, o cinzento e faixas de amarelo. Quando tinha quase dezoito anos, a natureza entendeu que estava na altura de transformar alguém que tinha nascido num berço de ouro e tirar-lhe a cor desmaiada.
Tornou-a numa mulher linda. Alta, tinha quase um metro e oitenta de altura, sensual, de uns olhos castanhos assentes num fundo branco, até pareciam estrelas, um cabelo a puxar para o louro que quase pareciam de seda, uns lábios carnudos e um corpo esbelto e um pouco de vaidade que só lhe ficava bem, parecia uma deusa grega.

Nos anos seguintes, todos os seus momentos livres eram ali passados. Sabia mais que ninguém, quando mudavam as empregadas das lojas, quantas empregadas tinha cada loja, sabia quando começava e acabava os saldos, sabia quando mudavam as monstras e quando eram apresentadas as novas colecções de roupas ou algum novo lançamento de perfumes - a loja que mais adorava era a que tinha uma montra ostentando as melhores jóias do mundo.
Era um mundo que a seduzia e encantava. Chanel, Christian Dior, Burberry, Armani, Dupont, YvesSaintLaurent eram nomes de marcas e perfumes que conhecia perfeitamente. Sabia a história e a origem dos nomes com dos países.
Gostava tanto da Chanel, que quando o pai foi a França, lhe pediu para trazer um livro com a história da marca.
Quando o pai regressou com muitas páginas da história da Chanel, se gostava da marca passou a adorar.


Achava que mulheres destas, só mesmo num país como a França. Uma fortuna e projecção de um nome que se tornaria uma das marcas mais famosas e caras do mundo. Quando um homem de minúsculo bigode declarou guerra ao mundo, uma simples e desconhecida costureira soube aproveitar, para fazer e inventar aquilo que não passava pela cabeça de ninguém.
Quando acabou de ler o livro, seu pai deixou-lhe uma mensagem, talvez para nunca se esquecer como se faz e mantém uma fortuna «é nas situações de crise que se fazem fortunas» para reviver uma pouco os tempos em que nasceu.

IV

Então contou-lhe algumas histórias da família. “No tempo da Segunda Guerra Mundial , os tempos foram difíceis para os países invadidos como para os aliados. A diferença de quem viu a sua pátria ocupada e de quem era aliado, resumia-se a duas coisas: os ocupados sujeitaram à regra do mais forte e os aliados tinham que colaborar, mesmo que tudo não passasse de uma simples hipocrisia. Tudo começou a faltar no mercado e até alimentos para comer estavam racionados. Nada era vendido sem o controle do governo, que na altura era governado por um homem licenciado em economia e finanças, chamado António de Oliveira Salazar, que manteve durante quase quarenta e oito anos o país sobre rédeas curtas. A classe mais baixa e mais desfavorecida não tinha dinheiro para comer nem para dar aos filhos. Tinham que pedir nas entidades institucionais senhas de racionamento. Levantavam-se de madrugada para poderem comprar um simples pão, açúcar, azeite e outros produtos indispensáveis numa casa de família.
Como as moedas, a vida também tem o reverso. Então quem tinha alguma coisa de si e muita astúcia, mas acima de tudo que não tivesse medo e fosse capaz de andar nas noites frias e escuras, encontrava no contrabando tudo aquilo que não existia no mercado tradicional nem era permitido vender. Foi assim que teu avô fez fortuna. Comprava aos contrabandistas, sabão que até ganhavam pelos por estarem escondidos na meio da palha; petróleo; açúcar;, azeite; farina; pneus, que na altura era difícil encontrar-se e mais coisas que sem elas não se podia passar.
Arriscou a vida, o ambiente familiar e os filhos. Perdeu muitas noites viajando numa carroça puxada pelo lindo cavalo e sempre acompanhado pelo seu fiel empregado. No seu bolso levava sempre uma pistola, porque os assaltos eram frequentes e a luz da carroça mais não era do que uma lamparina acesa com azeite.
Passava pelas estradas descampadas e pelo meio dos sobreiros para numa grande herdade de sobreiros se encontrar com quem lhe vinha fornecer os produtos. O negócio na altura era feito no «toma lá dá cá». Não havia fiados nem créditos. Tudo a pronto pagamento.



Um dia em que o Sol ainda não tinha nascido e que o negrão da terra estava no meio do branco, na estrada do Vale Marquês, dois assaltantes interpolaram a carroça do teu avô que ia carregada de farinha e mandaram descê-lo mais o condutor da carroça para ficarem em terra e levarem o meio de transporte. O primeiro a descer foi o velho Augusto, empregado do teu avô, ia já para mais de vinte anos.
Só um parêntesis: Este velho Augusto, era quem nas horas livres, levava teu pai a andar no melhor cavalo que havia na casa do teu avô. Sentava-me em cima do Russo, assim se chamava o cavalo e percorria o quintal da casa dos avós ,e onde eu, teu pai, fui criado.
Não podes imaginar, como ainda hoje, seu pi se comove quando se lembra destes momentos e daquelas tardes de Verão em que o Augusto assobiava para os cavalos beberem água e de seguida os lavar com uma mangueira ligada a uma torneira que existia nas paredes da grande adega. Enquanto os lavava, escovava-os com um grande escova com dentes de aço para ficarem bonitos e brilhantes.
Ana Margarida, estes momentos de felicidade só serão esquecidas quando a terra fria pisar o meu corpo.

- Acredito avô. O avô fala de uma forma tão profunda que até parece que está a viver as coisas. Continue
- Ainda bem que compreendes minha linda menina, são recordações de momentos que mexem em nós.
Era impressionante a entrega e cuidado que o velho Augusto tinha na higiene dos cavalos. Ainda hoje penso que quando eles sentiam a água que vinha da mangueira, que até sorriam e os olhos brilhavam de tanto prazer.
Ah!....mas o Russo, era um cavalo vaidoso. Alto, elegante, castanho, com um pequeno sinal branco em forma de triângulo no meio da cabeça, que quando galopava pelas ruas sentia-se como um príncipe. Sabia que as pessoas olhavam para ele. O seu galope era tão certinho que, até os seus guizos encantavam quem ouvia o seu tilintar.
Mas continuando; mal o Augusto meteu os pés no chão, uma forte paulada lhe caiu nas costas para ficar logo estendido. Foi neste momento de curtos segundos que os assaltantes olhavam para quem tinha sido agredido que o dono da carroça, teu avô, puxou pela pistola, mandando dois tiros para o ar. Foi remédio santo.
Ai pernas para que vos quero! Assim fugiram sem mais alguma vez incomodarem quem ali passava com frequência.
Teu avô, a partir desta aventura, passou a utilizar outra táctica para poder sobreviver e proteger quem tanto lhe era fiel.
Quando passavam no vale, um quilómetro antes e um depois, vinha o Augusto a pé sozinho, com uma pequena distância da carroça, que teu avô conduzia. Se ao Augusto algo o alertasse, dava um sinal de coruja para que quem vinha atrás invertesse a marcha.
Nem sabes como nos dias de Inverno quando se juntava a família na velha cozinha ou nas vésperas dos Natais em que a tua avó Joaquina, uma grande mulher, estava na cozinha com um avental, batendo a massa que iria fazer os felozes e as chalaças que depois toda a família comia, o conforto reinava entre todos os presentes.
Teu pai e mais alguns familiares, todos juntos ao calor da lareira ouviam as histórias que o avô contava. Eu, o mais pequenino, pedia: «conte pai aquela história do Vale de Marquês». Já a sabia de cor, mas pedia-lhe sempre porque o jeito que o meu pai tinha para contar as aventuras deixavam-me enternecido, controverso, curioso e medroso para dizer para comigo: «o meu pai é o maior homem do mundo. Até faz os ladrões fugirem».
Foi sempre um ídolo para mim, Ana Margarida”.
Outra história: “Como sabes a guerra durou de 1940 a 1945, a meio da guerra, começou a haver falta de palha. Sem palha não se podia dar de comer aos cavalos. Teu avô tinha para cinco cavalos que eram o meio de transporte mais usado na altura. Sustentar estes animais todos e não haver palha para lhes dar era o fim do mundo. Por portas e travessas, teu avô soube que algures num barracão de uma fazenda que fazia extrema com uma das dele, centenas de fardos de palha estavam escondidos. Os cavalos mal tinham já força para puxarem as carroças, que pensa teu avô fazer? Era a lei da sobrevivência e consequências da guerra, combinou com o Augusto para numa determinada noite levaram duas carroças e irem roubar uma carrada da palha. Assim fizeram.
Lá foram pela calada da noite, carregaram os fardos de palha e regressaram a casa. Descarregaram a mercadoria. Quando o teu avô menos esperava aparece-lhes uma patrulha da GNR a notificá-lo para ir depor ao posto. Nunca passou pela cabeça do teu avô que alguém tivesse visto ou assistido quer ao embarque quer ao desembarque. O comandante do posto, um velho sargento fiel ao regime, acusou-o de ter andado de noite a roubar fardos de palha ao proprietário de uma fazenda que fazia extrema com a dele e que por acaso até por extremas eram vizinhos.
Teu avô desmentiu categoricamente, até porque não havia provas do roubo. O graduado responde-lhe: “ com que então não existem provas?” Muito bem, seja feita a tua vontade. Chama por uma patrulha para os acompanhar, e vai daqui, foram todos juntos para a fazenda onde estava os fardos de palha, só que agora reduzidos.



Então à entrada do dito barracão estavam pequenos bocadinhos de palha. O sargento volta-se para o teu avô e pergunta-lhe: “continuas a negar” claro que sim.

- Vamos seguir toda a palha que está espalhada pela nossa frente e vamos ver onde acaba” disse o militar

Lá foram fazer aquilo que teu avô começou a desconfiar. Como já deves ter percebido, acabava na entrada do palheiro da casa do teu avô. Mas mesmo sendo o fiel servidor do regime ditatorial, o velho sargento era humano e propôs ao teu avo e quem o acompanhou, duas condições: ou vão presos ou tornam a levar a palha de onde veio. Lá teve que levar o que tinha trazido e tudo ficou abafado.

- Mas o avô quando trazia a palha nas carroças nunca olhou para traz para ver se não deixava rasto?

Qual quê, Ana Margarida, o medo, o pouco tempo que havia, a preocupação de chegar depressa, nunca mais se lembrou. O que queria era chegar a casa.
Outras histórias te poderia contar, Ana Margarida, mas para além destas peripécias, teu avô era um homem esperto e astuto. Arriscava a vida, porque afinal tinha uma família para sustentar e empregados cujas famílias dele dependia. Aprendeu quem em tempos de crise como foi o tempo da guerra, mesmo comprando-se caro no contrabando, ainda dava para fazer fortuna.
Depois....., depois, Ana Margarida, os anos seguintes não foram fáceis.”

V

Perdia horas numa grande livraria que existia no centro. Uma livraria que vendia e representavas as melhores editoras. Dos mais simples aos mais complicados, dos mais baratos aos mais caros, dos piores aos melhores escritores, dos menos aos mais famosos, de tudo um pouco aqui se encontrava à venda e em exposição. Para os mais eruditas, até uma secção de alfarrabista.
Foi nesta secção que teve conhecimento que no Brasil existe um escritor que já vendeu milhões e milhões de livros pela maneira como escreve como pela simplicidade.
Ficou a saber também que este escritor escreveu um livro chamado «Brida» que fala sobre feitiçarias e que tudo na vida é mensagens. Gravou para sempre na sua memória uma frase de um outro livro do mesmo autor “ Ninguém tem medo do desconhecido, porque qualquer pessoa é capaz de conquistar o que quer e necessita. Só sentimos medo de perder aquilo que temos”.
Escrever livros para serem lidos por todos não é como escrever livros técnicos. Há quem julgue que escrever uma carta, escrever para jornais, escrever crónicas, escrever romances, tudo é igual. Puro engano. Casa coisa tem uma maneira muito própria de se escrever.
Foi num momento de lazer no mundo dos livros que um dia soube que a escritora Sveva Casati Modignani era um dos nomes mais populares da ficção italiana, cujos obras se tornavam todos em bestselleres, como foi num destes momentos em que assistia ao lançamento de mais um livro, ouvir do seu companheiro de fila, esclarecimentos sobre um poeta chamado Pablo Neruda. Não sabia era que às vezes os poemas se tornam mágicos para quem os ouve como muitas vezes traçam o futuro, como ficou a saber que este poeta descreveu com palavras sublimes a exploração dos homens que passavam horas e horas debaixo da terra recolhendo nitrato que depois de vendido para quase todo o mundo se tornava na maior receita do Chile, mas que eram tratados e explorados como escravos. Pablo Neruda tirou da profundeza da sua alma, palavras que hoje estão escritas no tempo com palavras de ouro.
Das muitas honrarias e cargos que recebeu e ocupou durante a sua vida, para Pablo, só uma teve valor: aquela quando ia a pé num dia infernal a caminho de uma mina e de dentro de um buraco saiu um homem alagado em suor e com os olhos esbugalhados com cor de sangue que lhe disse “ Bom dia Irmão”. Para quem não sabia ler mas apenas o conhecia por ser o maior poeta do mundo como o maior defensor de quem era explorado e maltratado, prestou sem querer o que só os grandes homens merecem: o reconhecimento. Nunca mais seria esquecida estas palavras ditas por quem foi para que as imortalizasse numa obra que publicou.
Às vezes em casa perguntava a si própria porque gostava tanto de ler livros que falavam sobre coisas do sobrenatural, de espiritismo, de coisas herméticas, etc. Nunca encontrou resposta, mas dizia sempre para consigo própria que, alguma razão deveria existir.
Nunca acreditou naquilo que alguém lhe disse uma vez: “ quem lê este tipo de livros, fica paranóico ou passa-se para o outro lado, pois tornam as cabeças fracas”. Até lhe disseram que lhe acontecesse alguma fatalidade na vida poderia “ficar tonta”.
Muitas vezes sorrateiramente, fingia que lia um livro para ouvir as conversas de quem ela julgava saber muito. Raramente se enganava, tanto que, quando ouvia as pessoas mais idosas e com óculos com lentes muito grossas, no seu entender era por lerem muito, falarem nesta ou naquela obra, fixava o titulo mentalmente e no dia seguinte a horas diferentes, ia ter com o gerente da livraria para perguntar se tinha o dito livro. Se sim, comprava-o logo. De tal forma, que o responsável passou a ter uma admiração por ela, não pelos livros que comprava mas por ser tão nova e já se interessar pela leitura. Dizia-lhe muitas vezes “ vai longe, menina, vai longe!”.
A sua avidez pelos livros e pelas conversas nunca lhe deu para ver e fixar a cara das pessoas como das que também andavam pelos corredores que esperavam pelos descuidos de alguém.
Foi aqui que um dia também ouviu falar de um livro chamado “ A Casa dos Espíritos” de uma escritora chamada Isabel Allende. Ficou fascinada com esta autora. Mal sabia que ir ser lançado um livro da sobrinha de um homem que um dia pretendeu modificar o Chile, comprava-o logo.
A sua biblioteca era qualquer coisa de sublime. De fazer inveja a muitas bibliotecas municipais que por aí existem.
VI

Quem a seu lado estava sentado, pouco mais velho do que ela, falou-lhe de tal forma que ficou encantada. Vestia elegantemente com calças bem vincadas e casaco aprumado, uma camisa e uma gravata a condizer, colete, aroma de boa água-de-colónia, sapatos bem engraçados e florescentes que até brilhavam como os anéis de Júpiter, com o penteado bem arranjado, um relógio que usava como talismã, como uma personalidade bem forte e uma maneira de falar que mostrava por ser um simples cabeleireiro de homens, não era homem que mostrasse ser ignorante.
Da longa conversa que tiveram, ficou ainda a saber que também cantava lindos fados como contava histórias. Muitos dos seus amigos quando casavam, convidavam-no para as suas festas de casamento, com a condição de cantar para os acompanhantes dos noivos
Tanto gostou de o ouvir que a Alma do Mundo os juntou para ficar traçado naquele momento todo o futuro. Coisas do destino.
Uma amizade profunda nasceu entre Ana Margarida e Miguel ao ponto dos encontros se tornarem contínuos para passado pouco tempo atravessarem juntos a avenida para ir conhecer os pais dela que ao saberem ficaram todos babados para quem iria futuramente fazer parte da família.
Joaquina, andava desconfiado da euforia da filha porque já tinha idade suficiente para saber que quando uma mulher anda eufórica a chama do amor por perto deve andar. Tanto a apoquentou, que Ana Margarida acabou por confessar que a paixão estava a entrar dentro da alma e que o coração estava a ficar inflamado.
- Tens que o trazer aqui a casa para o conhecer. Se o teu pai sabe quem vai ouvir coisas que não deve ouvir sou eu.
-
Ana Margarida, sabia que a mãe tinha razão e estava na altura de dar a conhecer quem um dia seria pai da sua filha ou filho.

- Prometo-te que no próximo domingo o Miguel virá cá a casa para pedir a minha mão ao pai.
Assim foi.
Depois de ter falado com ele, ficou marcado que no domingo seguinte por volta do meio-dia, iria almoçar em família, para todos se conhecerem. Miguel, não dormiu na noite se sábado para domingo. Nervoso, levantou-se bem cedo.
A manhã outonal e a temperatura estavam amenas. Foi a uma esplanada de um jardim para saborear um pouco daquilo que só este espaço de lazer sabe oferecer.
Sentado numa mesa, olhava para as folhas que o leve Vento despregava suavemente das árvores enquanto ao mesmo tempo contemplava a beleza e os contrastes da natureza.
Olhou para o relógio e viu que ainda faltava muito tempo. Continuou a olhar para as árvores, quando viu o cair de uma folha do ramo de uma árvore, torcida pelo passar dos anos e de tão queimada estar do calor. Os seus olhos seguiram todo o percurso. Quando se acomodou na terra fria, viu no meio de duas árvores uma pequena sombra de algo que parecia ser uma pessoa. Continuando a olhar, esperou algum tempo para ver se não estava a ter alguma ilusão óptica ou se o perfil se deslocava. Nada aconteceu. Então levantou-se e saiu da mesa para ir ver o que era ou quem era porque a rectaguarda do grosso tronco não lhe permitia destrinçar a verdade da ilusão sombrio de um julgado perfil humano.
Voltado para a rua, sozinho e encostado à árvore castanhada estava uma fraca figura humana com pouco mais de doze anos que passava despercebida aos menos atentos. Perturbador, era o seu estado físico de tão magro estar.
Vestido com roupas todas desalinhadas e amarrotadas, com um cachecol de lá axadrezado no pescoço a aconchegá-lo, de cor castanha como a árvore que o amparava; sapatos a puxarem para o desleixado e a mostrarem que os seus melhores dias já há muito tinham acabado; os seus cabelos lisos, fininhos e alourados, não eram nem curtos nem compridos, simplesmente estavam oleosos e sujos; uma cara linda mas com uma cor torrada de tanto queimada estar pelo Sol para além de ressequida pelo Vento; orelhas transparentes pela claridade que nelas trespassava e um nariz achatado.Com uns olhos azuis da cor do mar, uma pequena lágrima vinda do seu olho direito, evidenciava uma profunda dor e amargura – talvez por a vida não lhe sorrir; olheiras profundas, demonstravam que dormir e comer eram coisas há muito que seu franzino corpo necessitava.
No momento exacto que olhou para esta pequena de gente, sentiu a sua voz interior dizer-lhe: “ és um privilegiado da vida; vives num mundo diferente e nem sequer abrevias os passos apressados que dás durante o dia para pensares e veres como o mundo destas crianças e tudo o que o rodeia”. É verdade, Reconheceu que muitas vezes a correria da vida e o desejo de chegar mais depressa, impossibilitava-o – aos outros também – de olhar para o que se passa a seu lado.




Esta voz interior mexeu bem dentro dele. Levou-o a pensar que às vezes para se encontrar o caminho certo tem-se que andar por caminhos errados.

- Quem és tu e porque estás aqui sozinho?

Olhando-o «olhos nos olhos» respondeu-lhe:

- Que tem o senhor a haver com isso?

Das suas palavras, compreendeu logo na aspereza das mesmas, que a vida não lhe sorria.

- Queres sentar-te comigo alia na esplanada, que te ofereço um copo de leite e umas torradinhas, porque pareces estar com fome?

Continuou a olhá-lo, bem lá no «seu fundo» e algo lhe disse que merecia a confiança que estava a tentar conquistar, respondendo-lhe:

- Sim aceito, porque tenho tanta fome, senhor. Já quase à quatro dias que nada mastigo.

Devorou tudo com satisfação o que tinha sido prometido pelo Miguel. Depois de ter conversado um pouco com ele, mais confiante, começou-se a abrir e contou um pouco da sua atribulada e curta vida.
A ingratidão da vida, o ambiente em que fora criado e a revolta interior, eram coisas que se reflectiam na conversa.
Seu pai músico saltimbanco, vindo e fugindo da miséria espanhola, veio para Portugal, porque alguém lhe disse que em “Portugal, ganha-se bem a vida pedindo esmola”. Explorava o filho com o pouco que sabia tocar, já que tinha o dom de aprender com o ouvido. Um luxo demais para uma pequena criança, que bem sentia na pele, o preço de saber aquilo que nunca deveria saber.
Obrigava-o a tocar melodias tristes nos locais de grande movimento em zonas turísticas, com uma concertina toda esfarrapada para que as pessoas, dele tivessem pena e lhes dessem esmola, que por sua vez, tinha que restituir diariamente ao pai todo o valor obtido.
Quanto não lhe davam o valor que o pai achava justo, a agressão e as ofensas eram coisas comuns na vida e ambiente familiar do pequeno, se ambiente se poderia chamar, a quem dormia dentro de um automóvel sem vidros, com bancos esfarrapados e apenas por pano roto e encardido de tanto ser usado.

Para agravar mais a situação, o seu estômago já não recebia qualquer tipo de alimentação há alguns dias, porque não trabalhou para ter mais receitas, que o pai gostava de receber e precisava para gastar no álcool, enquanto o seu rebento tocava na frente daqueles que sentados nas esplanadas das zonas de lazer, saboreavam os melhores acepipes, olhando-o com desprezo por estar descalço, sujo, roto e, ainda por cima, tocando músicas nostálgicas, quando na verdade queriam era: divertirem-se, pouco lhes interessando a miséria que na sua frente aguentava a passagem das tempestades.
Ainda hoje, Miguel, sente na boca o gosto amargo das suas lágrimas, quando o miúdo, depois de satisfeita a sua avidez, com uns olhos ternos, mas tão cavados, olha para as profundezas da alma de quem lhe matou a fome e lhe disse: “senhor, é tão triste estar a tocar e na minha frente ver as pessoas comendo e bebendo coisas que eu não sei o gosto que tem e pensar se algum dia terei o prazer que estavam a ter?” para lhe acrescentar docemente “sabe quando pesa a minha concertina?” claro que Miguel não sabia “às vezes, quando tocava, encolhia-me com dores na minha barriga de ter tanta fome”.
Porque as manhãs de Outono são mais curtas e o diálogo já ia longo, perguntou-lhe a razão de estar sozinho na cidade, para lhes responder “fugi de meu pai e das arrebatadas que me dava todos os dias por não lhe dar o dinheiro que queria”. No momento, Miguel ficou sem argumentos tendo em atenção a idade do pequeno.

- Para onde vais agora? Sem dinheiro, sem documentos, sem conheceres os locais e tão pequeno que és?

Erguendo o seu curto tronco e olhando para o Céu, que tinha a cor dos seus olhos, disse:

- Nem eu sei! Não é por aqui que se vai para Fátima?

Não foi a pé para Fátima, como pensava ir. Miguel num gesto de amor, levou-o e deixou-o numa casa de crianças carenciadas e abandonadas.

Hoje, sabe que está bem. Ali está e quer ficar; ali quer aprender a ser um homem justo, para que um dia possa estar sentado numa esplanada vendo o seu “filho comendo um gelado e não ver na sua frente uma desgraça de criança”.





Já a tarde ia a longa, quando Ana Margarida, depois de ter ouvido tocar a campainha, foi abrir a porta e deu de caras com Miguel.

- Miguel, parece impossível. Pela primeira vez que vens aqui a casa conhecer meus pais e teus futuros sogros, chegas a estas horas? Já julgaste o que os meus pais não vão pensar de ti e já pensaste o que me disseram por causa da tua demora?

- Ana Margarida não te preocupes que vou justificar as razões do meu atraso. Acredita, que eles vão adorar saber que os meios justificaram as causas.

- Espero que sim e que tenhas razão. Justificou a namorada.

Feitas as apresentações e justificadas as razões, o mérito de boas acções favoreceu-o em todos os sentidos perante os donos da casa. Mas, nada isentou que Celestino não lhe desse um recado.

- Não te preocupes com os outros Miguel, porque as pessoas não merecem que nos preocupamos com os seus problemas. Preocupa-te é com o que é teu, porque é assim que se arranjam grandes fortunas.

Passadas algumas horas de convívio, foram feitas as devidas despedidas, com um abraço e um recado “ até um dia ou até uma próxima oportunidade”.
Fechada a porta, Ana Margarida levou o maior raspanete da sua vida.

- Não tens vergonha de quereres para teu marido um barbeiro que não tem onde cair
morto? Pensas que ele gosta de ti? Ele gosta é do meu dinheiro e da minha fortuna.
Ana Margarida, ouvia e nada dizia.

- Nunca terás a minha benção para este casamento. Só no fim de morto. És uma ingénua. Logo haverias de arranjar um maltrapilho que só sabe é falar de livros e contar histórias como ajudar os outros! Se pensas que o teu avô levou um vida de cão para arranjar uma fortuna e eu a multiplicar por quantas vezes, desengana-te. Argumentou o pai

A mãe que não tinha dito nada, só dizia:

- Acalma-te Celestino que tudo se há-de resolver.

Foi então que Ana Margarida levantou-se e de tronco erguido com as palmas das mãos em cima da mesa, disse:

- Fique com a sua fortuna e com tudo que tem, que não troco nada disso pelo Miguel.

Assim foi, porque na verdade o grande amor pelo Miguel continuou e o pai teve que ceder ao longo do tempo aos caprichos e teimosia da filha, mesmo vivendo o resto da vida contrariado.
Afinal, Ana Margarida, até se borrifava para a grande fortuna. Haverá coisa que tenha tanto valor como o verdadeiro amor?
Com ou sem hipocrisia, o casal, teve que aceitar a decisão da sua única filha. Tanto que quando Ana Margarida começou a falar em casamento, Celestino, foi o primeiro a preocupar-se na compra da mobília e no local da festa do casamento.
O enlace tinha que ficar na história, porque o nome da família não era um nome qualquer.

VII

O casamento ficou mesmo na história. Quando Ana Margarida saiu de uma das casas de seu pai, que se situava numa das suas herdades ribatejanas a caminho da Igreja de Santiago, onde decorreria a cerimónia, com um lindo vestido desenhado por uma conhecida costureira francesa, já os seus convidados à muito a esperavam debaixo do velho carvalho que tinha sido plantado por um dos seus antepassados. Enquanto esperaram foi-lhes servido um pequeno-almoço composto das mais gostosas doçarias, já que até ao momento de os padrinhos testemunharem o compromisso, algum tempo demoraria.
No momento que se assumiu à porta, pronta a partir, um empregado devidamente fardado a condizer com o acto solene, que mais parecia um porteiro de um hotel de cinco estrelas, veio logo com uma charret toda engalanada com fitas de seda e flores, com o cavalo também todo enfeitado com enroladas num sisal muito especial.
Sentada na espécie rara, toda esta ficou tapada pelo branco do seu vestido, partindo assim a caminho da igreja com os convidados na rectaguarda.
Na Vila já toda a gente sabia que a filha do senhor Celestino e da senhora Joaquina se realizava naquele dia. Um dia de festa para a população que teve a possibilidade de poder ver passar o cortejo. Todos sabiam que o senhor Celestino era um «unhas-de-fome», mas o dia do casamento da sua filha, não era um dia qualquer. Neste dia abriu os cordões da bolsa e numa das partes dos terrenos da quinta, reservados para a populaça, como gostava de dizer, ofereceu um banquete que ainda hoje se fala.
Talvez por esta razão, enquanto a noiva passava pelas ruas, até as janelas das casas estavam enfeitadas com flores, colchas e enfeites especiais. Uma coisa nunca vista na terra. Mesmo quando um dia lá foi o Bispo da Diocese para inaugurar a igreja, se tinha visto tal coisa.
Como supresa e oferta dos habitantes a Banda de Música, acompanhou toda a manifestação tocando musicas adequadas ao momento. O pai e a mãe que iam no cortejo, quando a meio do percurso viram sair de uma ruela, a Banda, as lágrimas correram pelas suas caras. Muito intimamente, Celestino, então pensou que as pessoas não são tão más como ele as julgava. Quem diria que o povo que tanto criticava, lhe faria uma partida destas?
Chegados à igreja, até lá de cima, Santiago, deveria ter sorrido para o que estava a ver. No portão do adro da igreja, estava o noivo e seus convidados esperando pela noiva como pelos convidados da noiva.
Ornamentado estava todo espaço frontal à igreja com fitas feitas de papel dourado que dava um aspecto estonteante. Do lado direito estavam em fila indiana as senhoras e raparigas, do lado oposto, os homens e os rapazes. No meio, um grande alcatifa vermelha com pequenas tochas ardendo, como que a iluminar o caminho a quem ia assumir um compromisso vitalício como a promessa.
Até as imensas acácias espalhadas estavam cheias de flores, que quando os habitantes souberam, vieram correndo para ver que flores seriam. Ainda hoje estão por saber. Mas, há quem diga que vieram de propósito de Itália num avião que o pai da noiva fretou.
Quando o pai da noiva envolveu o braço com o de sua filha para entrarem na igreja, vários trovadores devidamente trajados com roupas, que pareciam ter vindos da obra que imortalizou Alexandre Dumas, começaram tocar e a cantar .

Quem estava no altar esperando pela noiva, sentiu neste momento, correrem-lhe pela face da cara, algumas lágrimas, não por tristeza mas por sentir a falta de seus pais. Se estes estivessem presentes como tudo seria diferente. Tinham falecido os dois quando Miguel tinha dezoito anos, num acidente de viação para os lados de Arruda dos Vinhos.

Mal entraram no centro da igreja, cujos bancos estavam cheios de orquídeas, vindas directamente da Holanda, uma enorme orquestra iniciava o toque de uma Avé Maria entendida por alguns como uma benção para quem dentro de pouco tempo estaria casado.
Realizada a cerimónia, Ana Margarida e Miguel, então já casados, seguiram com os padrinhos para a sacristia a fim de assinarem o livro oficial da paróquia para que tudo ficasse legalizado.
No enorme adro da igreja, estavam todos juntos, quer os convidados e familiares da noiva quer do noivo. Quando viram que Ana Margarida se vinha juntar a eles, milhares de bagos de arroz caíram do ar como milhares de pequenas pétalas de flores.
Parabéns e beijos, demoraram o tempo suficiente para que ninguém ficasse sem cumprimentar o feliz casal que se desdobrava numa onda de simpatia para agradar a todos. Os abraços e os parabéns dos seus tios maternais, que tomaram conta dele após o falecimento dos pais, comoveram-no.
Mesmo assim, uma dos velhos amigos de Miguel e companheiro das farras, não evitou, como quem não quer a coisa, de chamá-lo à parte e lhe dizer em segredo “ seu grande pulha, agora deixaste de ser cabeleireiro para passar a ser um ricaço. Não te esqueças dos teus velhos amigos!
Tiradas as fotografias nos locais mais belos e com a companhia dos convidados, partiu o cortejo a caminho da velha quinta, onde em zona especial, um enorme banquete os esperava, onde três orquestras faziam companhia musical.
Para que nada faltasse a quem participou num casamento, que ainda hoje é falado nas redondezas da célebre Quinta das Palmeiras, por detrás de um dos palcos improvisados para os músicos, vários cozinheiros, contratados nos melhores hotéis da Europa, assavam centenas e centenas de leitões, de javalis e outras espécies de animais. O cheiro que se perdia no ar até parecia que provocavam os peixes do rio que passava mesmo ao lado da extrema da quinta.
Talvez por r esta razão, é que Celestino, nunca se quis desfazer destes terrenos, porque nem todos tinham o privilégio de no fundo da enorme quantidade de terra preta que se perdia no horizonte, terem um rio que ia desaguar em Lisboa e que dava para abastecer toda a qualidade de plantação com milhares cabeças de gado.
O almoço e copo de água prolongaram-se até, estarem tantas estrelas no céu, que já a noite caminhava para o dia.
Quando alguém se lembrou que, estava no momento de chamar os noivos para ajudar a abrir uma das milhares de garrafas de espumante que Celestino tinha mandado preparar com a devida antecedência - e em segredo – é que se aperceberam que marido e mulher tinham desaparecido para algures, mas que, ninguém sabia onde.
Só a velha ama de Ana Margarida sabia para onde tinham ido: num avião a caminho da Ilha de Margarita.

Uma lua-de-mel passada num país tropical seduz o mais imortal. Miguel nunca tivera possibilidades de viajar para outros países porque os seus magros rendimentos não lhe permitiam tal coisa e Ana Margarida porque nunca se interessou passear por outras terras, porque achava que tudo o que tinha lido e visto nos livros como nos filmes, tudo acabava por ser parecido. Apenas os hábitos e tradições eram diferentes mas no fundo era tudo parecido.


Costumava dizer a quem lhe perguntava a razão porque não ia passear para o estrangeiro, quando o pai era tão rico e nunca lhe recusaria qualquer viagem, que “ os outros países são como as religiões. Existem centenas de religiões no mundo. Uns adoram Deus, outros Alá, outros o Buda, mas no fundo, exprimidos os nomes e a fé de cada um e, em tudo que acreditam, o fim e as crenças, é tudo a mesma coisa. Um só Deus”.
Nunca Miguel, tinha tido tanto dinheiro depositado na sua conta bancária. Quando estava na ilha de Margarita, muitas vezes perguntava a si próprio: «se isto é uma milésima parte daquilo que um dia será meu, que vai ser de mim quando tudo for meu?». Nem ele próprio sabia responder.
Um quarto de luxo no Margarita Internacional os esperava. Quando entraram no quarto, uma supresa aguardava-os: garrafas de espumante, taças com saladas de frutas, de gelados e jarros de flores.
A cama era modelo light e composta de lençóis de seda, coisa que não era estranho para Ana Margarida. Agora para Miguel aquela sensação de seda a passar-lhe pelas mão mais não era do que estar a sonhar com as Mil e uma Noites.
Era possível ser verdade tudo que lhe estava a acontecer? Para quem sempre viveu numa casa situada de uma freguesia rural, isto só podia ser um sonho ou então estava no paraíso e não sabia.
Enquanto pensava, Ana Margarida disse-lhe que ia arranjar-se à casa de banho para depois saborearem juntos os acepipes que lhes tinha sido oferecido. Quando regressou, Miguel teve uma miragem e uma mudança de cor que a sua jovem esposa até pensou que estava a sentir-se mal disposto ou alguns dos morangos que estavam em cima da mesa lhe tivessem feito mal. Mas não, era a beleza de poder ver pela primeira vez o corpo da esposa em trajes menores, cuja transparência dava aos seus olhos uma visão qualquer.
Não resistiu aos encantos de quem estava e como estava na sua frente. Numa fracção de segundos despiu-se e agarrou a esposa para levá-la ao colo direita à cama.
Ana Margarida, estava tensa e contorcia-se toda com esta atenção. Não que desconhecesse que os noivos na primeira noite fizessem estas coisas, só que: nunca tinha passado por esta sensação como também não estava a acreditar no sucedido que estava a suceder.
Miguel, tinha aprendido na sua vida de boémio e trovador como se amava uma mulher. Já algumas tinham passado pelos seus braços. Nunca lhe disse, mas sempre que ela lhe perguntava, respondia-lhe que jamais tinha tido relações sexuais com mulheres.
A sabedoria de um e a ignorância de outra, acabou por ninguém sair lesado. Foi então que Ana Margarida, sentiu pela primeira vez que o seu corpo tremia como varas verdes, tal era a ternura e meiguice com que Miguel a beijava.
Quando as suas línguas se entrelaçaram, Ana Margarida, fechou os olhos para começar a gemer. A vergonha era tanta que pediu a quem a consolava que desligasse a luz para se amarem às escuras.
Todo o seu corpo tremia e toda ela se encolhia quando as longas mãos do marido acariciavam o seu longo e perfeito corpo.
Momentos de loucura e de entrega total, foram os longos minutos mágicos que os dois sentiram quando os dois corpos transpirando se colavam. Quando chegou o momento da entrega e Ana Margarida sentiu que algo estava entrando dentro de si, os gritos de prazer quase faziam despregar as pequenas bandeiras que ornamentavam as pequenas taças de saladas de fruta e de gelados que estavam espalhadas por toda a mesa. Quando sentiu o orgasmo a aproximar-se e compreendeu que Miguel estava a apertá-la demais, fazendo parecer que os dois corpos se transformassem num só, descobriu o que era o amor. Durante os trinta dias que estivarem na Margarita tudo visitaram.
Levaram alguns dias visitando as principais cidades da ilha. Adoraram a Playa La Restinga, Punta Arenas, Las Marvales, a Playa Parguito. Quando regressaram ao hotel os seus passeios eram diários. Foi quando descobriram o El Centro Comercial y Recreacional de Margarita, situado na Avenida Luisa Cáceres de Arismendi. Um mundo diferente do que conheciam. Uma super feira de comida, salas monstruosas de cinema.

Do que gostaram realmente foi das duzentas Tiendas do Sambil que é um centro comercial que mete num canto aquele que Ana Margarida tão bem conhecia no seu pais. Nas Tiendas do Sambil, viram uma livraria que pensavam só existir nos livros. Quando entraram viram um grande letreiro que anunciava:
“ Hoje «Tiendas do Sambil» apresenta o maior contador de histórias da América”. Como não poderia deixar de ser, foram ver.
Um homem numa secretária anunciava que dentro de pouco tempo iria ler para todos os presentes a história que mais gostou de escrever. Uma história que correu mundo por ser tão verdadeira. Dizia que quando a escreveu, as lágrimas lhe corriam pela cara de tão comovida estar e de tanto ouvir o seu coração chorando.
Miguel e Ana Margarida sentaram na plateia bem perto do contador de histórias. Quando começou a ler a história de «Leilla, uma estrela do deserto» apenas escutaram as palavras ditas como sentiram a emoção com que foi contada.





“Tinha uns olhos pretos como uma azeitona que assentes num branco límpido faziam lembrar o branco do casario árabe. Apenas o seu olhar mostrava estar sempre numa agitação de tristeza. A sua pele com uma cor a puxar para o cálido do deserto e o seu cabelo escuro fazia com que fosse uma criança bonita.
Com uma doença esquisita desde a sua nascença, levava já nos seus dez anos, muitos dias passados no parapeito da janela do seu segundo andar, ora vendo quem passava ora vendo outras crianças brincando no recreio de uma escola frontal à sua casa que fazia extrema com a rua movimentada. Tão movimentada, que: carros, bicicletas, animais e outros meios de transportes puxados pelo homem, a poeira do ar, por causa do movimento e das confusões, fazia da comprida artéria uma babilónia de coisas que tanto alegrava quem não podia nela circular ou brincar.
Depois a elevada temperatura, as vozes misturadas que mais pareciam uma orquestra desafinada, as buzinadelas estonteantes dos carros e a gritaria das crianças fazia, deste lugar, um sitio encantador, alheando-as dos perigos que as cercavam.
Às vezes até o menino do golfinho, por andar sempre com o desenho do mamífero estampado na camisola, passeava ao ombro o seu saguim, dando estes guinchos delirantes. Costumava arreganhar os seus pequenos dentes, brancos como os icebergues para assustar quem distraídamente circulava. O menino do golfinho tinha uma missão: passar de vez enquanto por baixo da janela de Leilla.
Depois assobiava num som agudo, para quem estava em cima, ouvisse e visse que nos seus ombros ia aquilo, que numa troca de olhares, fazia macaquices de propósito para quem não podia brincar. Eram estes curtos e mágicos momentos que os dois pequenos seres sabiam ser exclusivos de ambos.
O dono do macaco nunca soube dos motivos da «criança não brincar com o seu bicho». A única coisa que sabia era a amiga do seu bicharoco «ter uns olhos lindos como as estrelas do deserto».
Por não andar e ser como as outras crianças, ouvia e via coisas que os adultos não viam, ou fingiam ver. Pela altura e posição que tinha a seu favor, estava todos os dias numa situação de privilegiada. Às vezes sua mãe, para não a contrariar, fazia-lhe as vontades todas. Uma delas era dar-lhe o almoço na boca, mesmo que muitas vezes não soubesse o que estava a comer, tal era a sua curiosidade para ver as brincadeiras das outras crianças. Os seus olhos estavam sempre voltados para quem brincava.
De tão pequena ser, sua boca nunca se abria para qualquer lamento. Sofria interiormente mas evitava que sua mãe se apercebesse.
Já a tinha visto muitas vezes chorar e ouvir palavras confusas, ditas num turbilhão de frases sem nexo, mas compreendendo que a sua doce e protectora sofria por nada poder fazer.
A mãe olhava-a bem nos olhos e via que as suas azeitonas brilhavam num choro cujas lágrimas nunca escorriam pela face mas enrolavam-se naquilo que um dia a sombra da terra taparia para sempre.
O desgosto de ambas era tal, que apenas lamentavam morar num bairro daqueles, onde as disputas da lei do mais forte eram as coisas mais normais deste mundo, fazendo com que muitas vezes a desordem se instalasse na zona e onde nem a policia mostrava vontade de ir, não pelos residentes mas pelos negócios escuros que lá se faziam aos olhos do dia, não havendo interferência de ninguém, excepto daqueles que viviam dos rendimentos dos produtos que vendiam. Um desassossego que importunava quem lá morava como amedrontava que visse e falasse.
Muitas vezes as raimonas da bófia, como lhes chamavam os traficantes do bairro, visitavam as ruelas mais escuras mas sempre vigiadas por quem encostado às velhas e sujas paredes fingia nada ver ou perceber para servirem de pombo-correio a quem percebia dos sinais que se perdiam nas noites.
Todos sabiam no mundo em que viviam, mas todos tinham feito a promessa de “ nada saber para os outros” de modo a que o silêncio por não ser comprado era ameaçado.
“Um inferno este bairro. Se tivesse dinheiro comprava uma casa numa zona sossegada e civilizada nos subúrbios da cidade” dizia muitas vezes a mãe solteira para o seu rebento quando via confusões e a retirava da janela, até ao dia em que esta lhe pediu para lhe fazer um pudim de leite-creme. A mãe que não queria que nada faltasse a Leilla, porque sabia que a sua vida seria curta, o seu maior desejo era fazer com que se sentisse feliz.
Num instante, correu para a mercearia mais próxima para comprar o que tanto iria adoçar a boca da coisa mais querida que tinha neste mundo.
A força do mal estava atrás da porta e quando nada indicava, rebentou uma confusão de fugitivos e de fardados, para num abrir e fechar de olhos, os tiros e balas cruzarem-se por percursos desconhecidos para quem já conhecia as sinuosas ruas e esconderijos dos malfeitores.
Uma bala maldita perdeu-se no alvo a atingir para fazer um ricochete embatendo de seguida na testa da pequena criança que nada dizia aos outros mas que tudo via.
Quando chegou a casa com o leite, satisfeita de mais um capricho ir dar a quem tudo merecia, encontrou no soalho gasto, de tanto pisado estar, sua filha estendida no chão banhada de sangue.
Branca a transpirando como uma desalmada, apenas viu o pequeno corpo de Leilla com os olhos muitos abertos olhando para o Céu.
Ficou-lhe para sempre a imagem dos pequenos braços abertos e estendidos no chão, dando a impressão que esperava a mãe para lhe dar o último abraço. Abraço este que não recebeu mas que deu a quem tanto amava.
Então num relance, levantou-se e olhou para onde a filha sempre olhava mas ninguém viu como nada ouviu.
Ainda hoje, está por saber como o Sol deixou de entrar em casa ou se alguma tempestade do deserto lhe entrou pela casa adentro, levando-lhe quem tudo era para ela.
Com uma profunda fé, mas ao mesmo tempo sentindo uma revolta interior abalada por desconhecer os desígnios divinos, prometeu a si própria que a partir do momento que deixou de ver e ter a sua pequenina, todos os dias estará à janela olhando para onde olhava Leilla, com a esperança de um dia poder ver no meio de quem brinca alguma estrela ou alguma sombra que a leve a julgar que aquilo que era seu voltou. Se nada disto acontecer, então que a sombra escura a leve para junto de quem já não tem. Nas noites de solidão, lembra-se do calor que dava a quem tanto precisava para se aconchegar no peluche cheio de borboto de tanto mimado ter sido”.
Quando o declamador terminou de contar a história, as lágrimas corriam quase em todas as faces de quem tinha ouvido tão eloquente «contador de histórias» contar a história de «Leilla».

VIII

Regressados da lua-de-mel. Ana Margarida vinha radiante e Miguel ainda mais feliz pelo que gozou e contente demais por saber que algo de bom o esperava. Celestino e Joaquina, ouviram durante horas seguidas as aventuras dos dois por terras de Cristóvão Colombo. O pai olhava de soslaio para as atitudes do genro como ouvia os desvarios que fez durante a ausência e pensava para com os seus botões, que a filha alinhou em tudo.

- Realmente, nunca deveria ter uma filha mas sim um filho. Que vai ser de tudo que arranjei quando fechar os olhos. Dizia em pensamento para si próprio

A mãe sentia-se feliz e contente por ver que o casamento produziu mudanças na sua pequena pombinha, como pedia interiormente a Deus que lhe desse um bom futuro. O genro até parecia bom rapaz. Por ter sido cabeleireiro, o que não falta é gente fina que vieram da classe baixa.

- A minha filha vai ser feliz por que vejo que os dois se dão lindamente. Disse em voz alta para todos.

O marido repreendeu-a logo para lhe dizer:

- Mas quem és tu para estares para aí a dizeres o futuro de uma pessoa que ainda mal conheces?

O genro que percebeu logo o recado, respondeu para dizer que seria como a D. Joaquina disse.

- Descanse senhor Celestino e Dona Joaquina que farei o melhor para que nada falta à vossa filha.

Foi quando Celestino disse com voz brusca, porque não gostou do que o genro disse.

- Era o que faltava faltar alguma coisa à minha filha, quando nem eu próprio sei a fortuna que tenho. Quando morrer deixarei o suficiente para que nada falte a todos e, ainda sobrará muito para fazer aumentar o que exista.

Era quase de noite quando a reunião de família acabou. Filha e genro despediram do país. Celestino foi à porta despedir-se da filha, mesmo quando bastava só atravessa o corredor e num tom seco disse ao seu genro:

- Na próxima segunda feira apresenta-se às nove horas no meu escritório para começares a trabalhar. Não te esqueças que é às nove horas e que segunda-feira é dia catorze.
Em casa, Ana Margarida chamou à atenção o esposo e pediu-lhe por tudo que não fizesse como no dia em que veio conhecer os pais.

- Não te esqueças que para o pai os horários e compromissos são para se cumprir.

Na segunda-feira, Miguel estava presente onde seu sogro o mandou estar. O dia começou logo com uma reunião com todos os directores a quem foi comunicado que futuramente o pelouro financeiro passaria a estar sob a responsabilidade do genro.
Miguel, nem lhe passava pela cabeça o património e investimentos que o sogro tinha como gerir fortunas para serem rentabilizadas, era algo tão complicado.

O seu assessor colocou-o à vontade enquanto ao mesmo tempo lhe ia descriminando como era o movimento na empresa, salientando-lhe que uma grande parte do dinheiro estava aplicada em vários Fundos de Acções, pelo que todo o cuidado era pouco. Basta às vezes uma má compra ou uma má venda para logo se perder milhares ou milhões de Euros. Advertência que Miguel anotou e que o deixou intrigado.
Seguidamente, outro director, do pelouro do património, mostrou-lhe a listagem do património do sogro como do valor monetário e dos investimentos que periodicamente são feitos conforme os lucros apurados no fim de cada ano.
Também ficou a saber que todos os terrenos agrícolas que eram propriedade e coordenados por este, mesmo que em cada herdade estivesse um responsável a que na linguagem do campo se chama de feitor.
Eram homens com conhecimento da terra, que sabiam quando se podava, quando se devia lavrar a terra, os adubos que se lhe deviam meter conforme a plantação a fazer, sabiam quando se devia começar a preparar as coisas para a vindima, quando homens e mulheres eram precisos para vindimar.
Neste homens rudes e habituados ao tempo e às estações tinha Celestino toda a confiança. Depois ao lado destes estavam os técnicos que faziam as análises, que diziam quando se devia mandar esta ou aquela semente, que tiravam os graus ao mosto para depois saberem como iria ser a qualidade do vinho.
No fim do ano, Celestino dava a todos uma boa gratificação. Entendia que «quem nos dá dinheiro a ganhar, devem ser estimulados, mesmo que o que dava fosse uma insignificância relativamente com o que tinha ou ganhava.

- As grandes fortunas não se fazem por acaso, dizia para consigo próprio.

Quando regressou a casa no automóvel da empresa, conduzido por empregado, Miguel levava a cabeça feita em água, porque nunca lhe passou pela cabeça que o sogro fosse tão rico como tivesse uma fortunas em terrenos e outros bens imobiliários. Como ia dar conta do recado, uma pergunta que Miguel fez a ele próprio como milhares de vezes disse para consigo próprio se alguma vez daria conta do recado.
Celestino, decorridos alguns meses, entendeu obter depois informações de todos os directores, para saber como iam as coisas financeiramente sobre a bitola do seu genro. Não foram as melhores mas também não eram as piores.
A sabedoria vai-se adquirindo e só os anos dão experiência. Alguns directores informaram que nem sempre os investimentos feitos por Miguel eram os melhores e se alguns não foram um enorme prejuízo, foi graças ao esforço e pressão dos mesmos que fizeram ver com vários argumentos que as aplicações iriam ser um desastre, argumentos que davam a Miguel o bom senso de voltar atrás para não haver grandes prejuízos e para evitar que depois o sogro lhe pedisse satisfações, quando tinha sido avisado pelos entendidos.
Às vezes Miguel, sentia que o sogro não lhe dava poderes suficientes para gerir as empresas, porque desconfiava que de tudo o que fazia, o sogro sabia. Quase jurava que sabia de onde partiam as denúncias, mas nada podia fazer. Faltava-lhe o poder absoluto.

Para Ana Margarida, seu esposo era o melhor administrador e um grande trabalhador. Tanto que, nunca ouviu de seu pai uma palavra a dizer mal do Miguel.

Logo, era sinal que o genro tinha se adaptado aos negócios e que pela sua competência nem merecia apenas falar ou discutir.
Para além de amar loucamente Miguel, admirava-o dia após dia, porque quando em casa falava de negócios, mostrava responsabilidade e visão. Falava com frequência quando o pai se retirasse da administração que faria grandes investimentos em áreas totalmente diferentes das que existiam. Só não propunha agora ao sogro porque achava que não estivesse de acordo.
Dizia – lhe, com uma quase certeza, se o fizesse que o pai não acreditaria na rentabilidade dos investimentos, por tão novo ser e há tão pouco estar nas empresas.
Ana Margarida, acreditava e confiava plenamente no marido. Jóias e roupas das mais caras, rara era a semana que não trouxesse para casa, oferecendo-as sempre com um ramo de flores a acompanhá-las.
Ana Margarida, sentia-se a mulher mais feliz de ter casado com o homem mais inteligente do planeta. Das poucas vezes que precisava de fazer compras, nem precisava de pedir dinheiro ao marido.
IX

Celestino foi criado no meio da terra. Lembrava-se com frequência de quando era criança uma das coisas que mais adorava era acompanhar com os empregados agrícolas quando estes iam para as fazendas. Quando era altura de os homens irem para o campo podar as videiras, aquele estalar das tesouras cortando os ramos das árvores encantavam-no. O vazio dos ramos cortados visto do longe dava-lhe a sensação de um horizonte espaçoso onde a terra se sentia vazia por lhe ter sido tirado aquilo que ela tinha criado.
Era a metamorfose das coisas e a razão de as coisas nunca se perderem mas transformarem.se. Quando chegava a altura da apanha das azeitonas saltava de contente para ir ver as mulheres e homens que apanhavam a azeitona.
Todos levavam umas cestinhas com as suas pobres refeições que ficavam guardadas dentro de uma pequena casa de arrumações onde também eram guardadas as ferramentas de um dia para o outro.
Quando começavam a apanha, os seus olhos brilhavam quando via os trabalhadores a estenderem um longo pano de oleado por baixo das oliveiras e depois os homens mais altos e mais fortes com um longo pau batiam com força para abanarem os ramos de maneira que as azeitonas caíssem para de seguida os que estavam em cima dos oleados separassem as boas das más como metiam num monte as muitas folhas que com elas caíam.
Adorava mexer nas azeitonas pretas que caíam e depois metê-las num cesto de verga, como faziam os assalariados, mesmo ficando com as mãos todas pretas que até pareciam ter sido pintadas com tinta preta.
Quando chegava a casa sua mãe ralhava com ele por ter vindo naquele estado. Andavas dias com os dedos todos sujos porque a marca das azeitonas não saíam facilmente.
Quando chegava o Verão vivia os dias numa euforia porque sabia que dentro de poucos dias as carroças iriam começar o rodopio no vaivém de e para as fazendas, ora carregando as uvas ora as despejando nos lagares para mais tarde se fazer o vinho.
Quando lhe era permitido, ia numa carroça ver as mulheres, que eram contratadas no Norte do Ribatejo, a quem os locais chamavam de barroas, apanharem as uvas. Cortavam os cachos de uvas e iam metendo nos cestos até os encherem. Depois os homens mais fortes colocavam o cesto ao ombro e iam numa correria levá-lo ao recebedor que se encontrava em cima da carroça, despejando. Assim ele via até encherem a dorna com as uvas. Uma coisa aprendeu: enquanto grupos apanhavam as uvas brancas outro apanhavam as tintas, cujas carroças com as respectivas dornas estavam separadas, mesmo que viessem juntas, na adega cada qualidade de uva tinha o seu lagar. Bem cedo aprendeu que tudo na vida tem um fim e tudo deve ser separado.
Quando a carroça vinha para casa com a dorna carregada de uvas, sentava-se ao lado do companheiro de viagem e olhava para as grandes áreas de vinhas que circundavam toda a planície ribatejana.
Ao longo do percurso via cavalos puxando outras carroças, umas indo para outras fazendas, outras vindo carregadas como a sua. Chegado a casa, saia da carroça para ver as manobras que eram precisas fazer para se descarregar a dorna.
De lado via o adegueiro dava ordens ao condutor para que aproximasse bem a carroça da janela do lagar para que ao tirar as uvas da dorna não se perdesse o mosto que pelo peso das uvas se tinha produzido no percurso da fazenda para a adega.
Descalço e metido dentro da dorna em cima das uvas, com uma forquilha enviava os cachos para cima de uma espécie de uma manilha aberta inclinada e que ligava a dorna ao interior do lagar.
Só quando o lagar estivesse cheio é que um grupo de homens ia lá para dentro para iniciarem o longo percurso de pisar as uvas. Descalços e com as calças arregaçadas quase até à cintura, levavam dias inteiros a pisarem as uvas para que estas se transformassem em mosto.
Celestino levava horas e horas a ver os homens todos em linha a pisarem as uvas. Passos curtos e alinhados. Não se importava de ouvir os versos que os pisadores repetiam a cada volta. Começavam numa ponta do lagar e iam até à outra, depois invertiam o sentido. Aquele cheiro das uvas e do mosto, davam-lhe um prazer enorme. As bolinhas que o mosto fazia. Encantavam os seus olhos, para de seguida os cachos ficarem apenas com as pequenas grainhas.
Um dia, o capataz da pisa da uva tinta, convidou-o para ir para dentro do lagar pisar um pouco com ele as uvas. Ficou encantado.
Com o lagar cheio de uvas o seu corpinho ficava soterrado a até meio da cintura. Nunca se apercebeu nem o capataz se lembrou que o corpo frágil não estava habituado a estas coisas, mesmo que o fim fosse agradar a quem tanto olhava.
Quando a mãe chamou Celestino e o viu com as pernas todas sujas do sumo das uvas, ralhou tanto que Celestino teve o maior receio da vida dele, o de levar uma carga de pancada. Só sossegou quando viu a mãe a dar um enorme ralhete ao capataz pelo que tinha feito e permitido que acontecesse. Só nesta altura é que o capataz se apercebeu que tinha cometido uma irresponsabilidade como só depois de lavado e bem esfregado é que Celestino descobriu que as pernas dos homens andavam sempre sujas de cor tinta, mesmo que no fim de cada dia lavassem com a água da mangueiras as pernas com sabão azul junto da pia onde os cavalos todos os dias à tarde bebiam água.
Todos os dias quando acordava olhava para as pernas para ver se já estavam brancas. Levou semanas seguidas e tomar vários banhos todos os dias, até que quando deu por isso, tinha desaparecido o que tanto o incomodava. Nunca mais se meteu noutra.
Este amor às coisas da terra fez com que ao longo dos anos tudo que estivesse a ela ligado, mexesse nele. Não era por acaso que desejava que Ana Margarida estudasse e tirasse um curso ligado as coisas da terra. Mas o destino não lhe deu esse prazer como nunca teve o prazer de ter um filho para poder tomar contas das suas terras.
Muitas vezes nas noites frias quando se sentava junto da lareira, pensava que quando tivesse um filho, seria criado nomeio da agricultura. Imaginava-o vestido como um homem do campo. Botas de sola, calças justas, boné na cabeça, mexendo na terra e dizendo aos capatazes no fim de cada semana que para a semana seguinte os serviços seriam feitos com a escala que faria. Um prazer que nunca teve, mas que lhe estava atravessado como um nó na garganta.

Os anos começavam-lhe a pesar. Afinal era já um homem na meia-idade e cinquenta anos começam a pesar. Muitas vezes pensava na razão de trabalhar tanto e tanto se preocupar com tudo o que tinha. Tudo que tinha estava a ser bem gerido e bem administrado excepto algumas empresas, talvez as mais rentáveis que não estavam a funcionar bem como queria, porque o genro não era aquilo que pensava. Mas, que havia de fazer?
Já lhe faltava a paciência para muita coisa e às vezes até sentia uma impressão qualquer, tipo de uma pequena dor, no lado direito do peito como uma sensação no braço. Nunca ligou porque mesmo sendo frequente esta sensação não era nada de especial e fazer consultas de rotina era coisa que detestava, porque achava que os médicos não tinham opiniões iguais. Cada um dizia patologias diferentes e das poucas vezes que tinha ido a consultas de rotina, que se contavam pelos dedos de uma mão, uma coisa aprendeu: os médicos adoravam passar recibos.
Num dia de Verão acordou com uma nostalgia tão grande, com uma pressão no peito e uma espécie de dificuldade em respirar, que se levantou bem cedo e foi para a melhor fazenda que tinha.
Quando lá chegou, depois de atravessar um quarto da estrada que atravessava a vinha, sentou-se em cima da raiz de uma oliveira e sozinho meditou um pouco na vida como no que tinha herdado dos pais e como tinha aumentado o património. A sua filha e seus futuros netos tinham o futuro garantido. Bastava-lhes saberem manter tudo o que tinham.
Olhou para o horizonte e viu uma pomba branca sobrevoando as videiras em direcção onde estava. Poisou no ramo de uma outra oliveira próxima. Foi quando sentiu uma voz interior dizendo-lhe que “ Celestino, goza a vida e deixa de trabalhar tanto. Já alguma vez pensaste que quando morreres nada levarás contigo?”.
Este aviso mexeu profundamente com ele. De tal forma que até sentiu uma forte contracção, ainda mais forte das sensações que tinha sentido quando acordou. Levantou-se imediatamente e disse em voz alta, já que estava sozinho – se alguém o ouvisse até pensaria que o «Celestino, uma pessoa de bem, endoideceu» - “ vou-me embora e vou passar pela autarquia pedir informações turísticas do concelho, mesmo que a algum tempo já não vivesse nele, foi nele que nasceu e cresceu, para saber um pouco da sua história.
Meteu o automóvel a trabalhar e fez o inverso do percurso que tinha feito. Quando chegou à recepção da autarquia, perguntou à funcionária onde poderia encontrar alguma brochura que dissesse os locais mais importantes, porque sempre tinha ouvido falar em escavações arqueológicas, mas que nunca soube onde estavam e se na realidade existiam. Foi-lhe logo oferecido o que solicitava. Sentado no interior do seu carro, passou com os olhos pela mesma, quando viu que no roteiro estava um texto de Sérgio Santos que dava e indicava tudo o que precisava saber.
Hoje o dia vai ser meu. Ninguém vai saber onde ando e o que ando a fazer. Leu então com toda a atenção o que queria saber.

“Habitada pelo homem desde tempos remotos, foram aqui recolhidos importantes achados arqueológicos do paleolítico inferior, os quais denotam um presença humana na região há mais de cem mil anos. De entre as estações arqueológicas conhecidas realçam o “Cabeço da Bruxa” e o “Alto do Castelo”, onde foram efectuadas escavações científicas. O Alto do Castelo foi povoado há mais de quatro mil anos. Atingiu o seu auge durante a idade do Bronze Final ou Ferro; época em que os habitantes enterraram os seus mortos em urnas, mas bem conhecidas necrópoles do Tanchoal e do Meijão, e como recentemente provaram as escavações arqueológicas, no cabeço da Bruxa.

A muralha de terra, ainda bem visível no Alto do Castelo data provávelmente da época Romana, ou seja de há cerca de dois mil anos. Supõe-se que constituiu a fortificação do acampamento de um dos exércitos romanos da Lusitânia. Juntamente com as jazidas paleolíticas, cuja riqueza testa a importância da região desde os tempos mais remotos, estas estações são consideradas Património Arqueológico Nacional.
No termo do concelho, segundo alguns autores, passava uma das vias militares romanas em direcção a Mérida. Confirmando o facto, foram referenciados vários marcos miliários dedicados a Trajano, ânforas, mós, moedas e cerâmica comum romana, entre outros objectos.
O topónimo do nome Alpiarça é geralmente atribuída origem árabe. Sendo primitivamente a designação do rio que corre junto à povoação, teria resultado da aglutinação dos vocábulos AL (árabe) e PEARÇA (latino). Nas inquirições de El Rei D. Dinis, em 1295, encontra-se a primeira referência escrita a Alpiarça, a então ALPEARÇA. Poucos anos mais tarde, em 1338, uma carta de D. Afonso IV menciona a existência de uma herdade “No regaengo d’Alpearça a par do Moynho de Vento” no limitar de Santarém.
D. Pedro, regente do reino, respondendo às petições do Povo das Cortes, afirma em 1442 que o Rio de Alpiarça, é coutada Real em alguns lugares para o seu desaborrecimento, como aliás já tinha sido no tempo do seu Pai D. João I. No século XVIII ainda se mantinha esta régia preferência. Autores da época noticiam o sabor, abundância e tamanho dos sáveis, fataças, barbos e peixões que aí de podiam pescar. Em 1527, segundo o censo da população, a aldeia da ponte d’Alpiarça e zona envolvente contava com cerca de quatrocentos moradores. A charneca de Alpiarça, foi ao tempo Coutada real de caça. Na Atela caçava-se então o javali, a raposa, a perdiz e o veado. Gil Vicente na tragicomédia “Nau de Amores”, representada em Lisboa em 1527, refere que Alpiarça pertencia ao mestre da Ordem Militar de Avis
No adro da Igreja Matriz, inaugurada em 1889, podemos encontrar um cruzeiro com a data de 1575, o qual foi retirado do largo fronteiro a uma igreja demolida nos primeiros anos da República.
Com cerca de mil habitantes em 1756, a estrutura económica de Alpiarça, foi profundamente abalada com o arranque das vinhas do campo, ordenado pelo Marquês de Pombal, e a sua substituição pela cultura de cereais.
Mais tarde D. Maria I, em 1789, atendendo ao pedido dos lavradores de Alpiarça que se queixavam dos prejuízos causados pelas cheias, autoriza a replantação da vinha. Por Alpiarça, povoação de características profundamente Ribatejanas, passou também, em 1824 o príncipe D. Miguel. Aqui se correram já noite dentro, toiros, com archotes, alguns acesos, atados nos paus dos bois. Em 1833, a freguesia de Alpiarça revolta-se aderindo à causa liberal e a D.Pedro. Anos passados, em 1846 levantando-se a voz de Manuel da Silva Passos, foi uma das primeiras terras da Estremadura a aderir à revolta popular da Maria da Fonte.

Mais conhecido por Passos Manuel, aquele vulto do Liberalismo viveu na Quinta do Tôco, tendo dedicado a Alpiarça uma particular afeição. Almeida Garrett, grande amigo de Passos Manuel, foi por este convidado a visitá-lo em Alpiarça.
Este convite leva-o a escrever as “Viagens na Minha Terra”. O próprio Garrett o afirma na “Viagens” :- Abalaram-me as instãncias de uma amigo”, e mais adiante, “era uma ideia vaga, mas desejo que tenção, que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo (...)”.
Em Alpiarça realizaram-se nos últimos anos da Monarquia, importantes comícios de propaganda republicana, em que estivarem presentes as principais figuras do movimento. José Mascarenhas Relvas (1858-1929 (, membro influente do Directório do Partido Republicano, aqui fixou residência na Quinta dos Patudos. Personalidade de notável sensibilidade artística, de espírito nobre e esclarecido, proclamou a República em 5 de Outubro de 1910, tendo sido Ministro das Finanças e mais tarde chefe do Governo, entre outros cargos....”.

- Mas será possível ter nascido, crescido e vivido durante alguns anos nesta terra e não saber destas coisas como desconhecer onde estão as Estações Arqueológicas? Perguntou a si próprio.

Volta onde tinha estado e solicitou mais informações sobre as ditas estações. Foi-lhe oferecido mais uma brochura e no parque de estacionamento ficou a saber pelo que leu que o “Cabeço da Bruxa” situa-se na Quinta da Gouxa, num cabeço de areia com seis metros de altitude. Durante o Calcolítico, o Cabeço da Bruxa foi ocupado com um povoado, como provam os materiais aí encontrados: ídolos de cornos e cerâmica campaniforme. Na idade do Bronze Médio ou Final não existiu aí um povoado, mas sim um local de enterramento onde foram encontradas três urnas, no local da sua disposição.
Durante a Época Roma voltou a ser um povoado. Foram aí encontrados, fragmentos de cerâmica comum romana e de uma lucerna do Século I. Foram também encontrados quatro fragmentos de terra sigilata hispânica e sete fragmentos de terra sigilata clara e também uma moeda cartaginesa, no último quartel do século III antes de Cristo.

“Necrópole do Tanchoal e Necrópole do Meijão”: Alpiarça era uma Vila distinguida pelo seu diferente ritual funerário. Os corpos eram incinerados e as cinzas resultantes eram depositadas em pequenas urnas de cerâmica. É por esta razão que Alpiarça ficou tão conhecida pela sua cerâmica de engobe de cinzento-escuro. Neste local foi encontrada cerâmica de Alpiarça e um machado de gume curvo. Presume-se que este local data da Idade do Bronze. A Necrópole do Meijão situa-se próximo da Ribeira da Atela e foram lá encontrados noventa e um fragmentos de braceletes de bronze e cinco arcos inteiros.
“Alto do Castelo”: Situa-se entre a Necrópole do Tanchoal e do Meijão, num muro com uma extensão que atinge os onze mil e cinquenta metros. A Muralha construiu-se em 140 antes de Cristo quando por aqui passaram as legiões do Décimo Junius Brutus. Refira-se que foi nesta altura que esta estação arqueológica ficou conhecida por “Alto do Castelo”
Em 1916 Mendes Corrêa, designa-a apenas por Castelo e é em 1984 que o Instituto Alemão a designa por Alto do Castelo. Presume-se que este local tenha sido ocupado antes da Época Romana – Idade do Bronze Final e idade do Ferro.
Sabe-se que foi ocupado durante a época Romana, porque foram encontrados à superfície alguns materiais dessa altura como: mós, fragmentos de cerâmica comum romana, fragmentos de ânfora completa feita à roda e moedas romanas.
“Cabeço da Bruxinha”: Pequeno Outeiro situado na confluência da Ribeira dos Patudos com a Vala de Alpiarça. Pensa-se que terá sido separado do Alto do Castelo e que tenha tido ocupação durante a idade do Bronze ou Ferro e Idade Romana. Em 1916 Medes Corrêa encontrou aqui cerâmica comum romana (fragmentos de Dolia).
“Vale do Forno”: Situa-se no Complexo Turistico dos Patudos, data do Paleolítico Inferior e do Período Acheulense. Foi escavado pelo arquitecto Luís Raposo, nos anos 80 e foram encontrados alguns artefactos como: machados, bifaces, entalhes e denticulados”.

- Como é possível que tenha vivido tantos anos na terra em que nasci e nunca tenha sabido destas coisas ligadas às entranhas da terra? Repetia, Celestino.

Meteu-se no automóvel para entrar na E.N. 114 em direcção ao sítio onde se situam as estações arqueológicas sem se aperceber a que velocidade ia como a sua disposição não era a melhor – talvez pela emoção após tantos anos de ausência. Na recta final da vila do percurso se situavam os achados romanos, apareceu-lhe, como caído do Céu, um velhote a atravessar a estrada segurando uma bicicleta à mão. Não teve tempo de racionar nem de reflectir – os reflexos de um homem cinquentão, já não são os de um jovem. Em segundos, o automóvel que conduzia captou para só parar quando chocou de frente com uma camioneta que vinha em sentido contrário, carregada de blocos de mármore. Transportado ao Hospital Distrital de Santarém, já chegou cadáver.
X

Mariana, chegou ao fim de do dia cansadíssima. Tinha andado durante todo o dia a ajudar a desarrumar as loiças, os bibelôs, os quadros, a tirar as cortinas, os imensos livros que faziam parte da sua pequena biblioteca desmontar os pequenos candeeiros das várias divisões, desmontar os pesados móveis e levá-los com a ajuda dos pais para próximo da porta de entrada.

Para os quinze anos que já tinha tal esforço era demais, mas admirava-se com ela próprio na força que tinha, que até o pai pensava que: onde a filha tão nova ia buscar tanta força.Depois teve que ajudar a limpar o pó e embrulhar as peças mais frágeis em folhas de jornais para que não se partissem.
Era preciso preparar tudo para quando chegasse no dia seguinte a camioneta de aluguer, tudo estivesse à mão de carregar e ser transportado para a nova casa que os pais tinham comprado.

Antes de se deitar, veio pela última vez à varanda do prédio, onde tinha nascido e vivido para se despedir da bonita vista que tinha. Reparou então que a abóbada celestial estava a ficar com uma cor cinzento-escuro. Quando se meteu na cama, nem queria acreditar, tal era o cansaço. Dormiu como uma pedra e nem se apercebeu da trovoada que caiu durante a noite onde a água da chuva deslizava com toda a sua grandeza, mas com uma força que até assustava.
Pela manhãzinha bem cedo, quando acordou, sentiu náuseas, alguns vómitos. Meteu a mão na testa e ficou com a impressão que tinha febre, mas quando se mexeu para se levantar teve a sensação que a perna direita estava sem acção.
Sentiu umas dores imensas o que a levou logo a chamar a mãe, que de ver a filha com um aspecto tão esquisito e a transpirar chamou o marido para que tirasse imediatamente o carro da garagem para levar Mariana ao hospital. Algo não estava bem.
Chegada ao hospital e feitos os devidos exames, o médico que estava de «banco» mandou-a logo subir para o «bloco operatório» porque o que ela tinha era um hipocôndrio no lado direito, mais conhecido por «apendicite.
Quando operada já regressou à sua casa nova. Passados alguns meses, começou a sentir algumas dores para se manter durante muitos anos. Por mais exames, radiografias e análises que lhe fizesse, os resultados eram todos negativos.
Uma coisa Mariana sabia: que tinha dores, algumas bastantes fortes, porque era ela que sentia na pele os efeitos. De tanto caminhar para o hospital e já ser conhecida demais com cliente, um médico, com aparência dos seus quarenta anos, mas novo ali no hospital, que ao fazer a sua ficha médica perguntou-lhe se já alguma vez tinha sido operada. Contou-lhe o seu calvário até aquele momento. O médico, que deveria andar pelos quarenta e poucos anos, mas admitido recentemente no hospital, mandou fazer urgentemente exames complementares.

Os resultados acusavam algo de estranho no interior de Mariana. Marcaram-lhe logo uma operação para o dia seguinte.
Quando o médico-cirurgião olhou para o que causava as dores, a Mariana nem queria acreditar no que tinha na sua presença. Nem mais nem menos do que o resto de um penso, completamente podre, que o colega que a tinha operado ao hipocôndrio se tinha esquecido de tirar.

- Parece impossível que um médico que faz uma operação se esqueça no fim da mesma, conferir se as: compressas, as agulhas, os instrumentos operativos são os mesmos com que iniciou a operação! Disse em voz alta para todos os presentes no bloco operatório.

Ao médico assistente, fez uma advertência:

- Quando um dia fizer uma operação nunca se esqueça de olhar bem para dentro da cavidade abdominal da paciente se lá ficou alguma coisa e de conferir os instrumentos e todo o restante usado para que nunca lhe aconteça igual ao que acabou de assistir.

Foi quando uma enfermeira-estagiária perguntou ao cirurgião quais as consequência do esquecimento.

- As consequências, enfermeira, é apenas uma consequência. Nunca mais, esta jovem que está deitada na marquesa poderá ter filhos porque ficou estéril.

Nunca mais Mariana foi a jovem que era. Levou anos a omitir ao marido a razão porque nunca engravidava. Valeu-lhe que o marido era um homem tolerante a aceitou as consequências.
Lá bem no fundo da alma de Mariana, os efeitos do esquecimento médico, passaram a ser um permanente tormento ao qual nada podia fazer.
Depois do marido se ausentar para o emprego e quando terminava as lides de casa, ocupava os seus tempos livre ou passeando pelas ruas da cidade vendo as montras que lhe ajudavam a passar o tempo. Visitava as grandes zonas comerciais e algumas livrarias que estavam localizadas no seu habitual percurso. Calcava milhares de vezes as pedras dos passeios de tanto passar por cima delas. Nas manhãs livres adorava ir dar a sua voltinha pelo mercado diário e no mercado semanal que estava instalado no principal largo da cidade ao ar livre. Perdia-se no meio de tanta gente.

As barracas espalhadas pelo grande espaço e as milhentas coisas que lá se vendiam encantavam-na. Só tinha medo de passar pelo meio das barracas dos ciganos. Estes assustavam-na. Talvez porque quando era pequenina, sua mãe a obrigava a comer e quando ela não queria comer lhe dizia se não comesse a metia à porta para quando os ciganos passassem, a levassem. Ensinou-lhe também que era preciso muito cuidado com os saltimbancos, o que fazia com que perguntasse quem era os saltimbancos. Então no momento da duvida, a mãe aproveitava-se para lhe dar de comer e dizer-lhe que eram um tipo de ciganos que andavam pela rua para roubarem os meninos que por ventura estivessem à porta por não ter comido. roubassem.
Adorava as confusões e as grandes aglomerações de pessoas. Nunca conseguiu descobrir a razão mas às vezes dizia para si própria que nada acontece por acaso.

Era nestes momentos de solidão que via muitas vezes via as mães a passearam os seus bebés nos carrinhos ou em alcofas. Sentia tanta revolta como amargura dentro de si. Sabia que nunca mais na vida teria alguma possibilidade de poder ter aquilo que desde criança desejou: ser mãe.
Lembrava-se então quando criança que apoquentava a cabeça da mãe para lhe comprar bonecas para depois em casa brincar com elas.
No fim de brincar com as bonecas, despia-as, lavava os vestidos, metias penduradas no estendal da mãe para secarem.
A mãe achava graça a estas coisas. Dizia-lhe sempre que ia ser uma grande mulher e a melhor mãe do mundo. Com o carinho que tratava as pequeninas peças das suas filhas felizes dos filhos da Mariana.
Um dia fez uma birra que obrigou a mãe a comprar-lhe um quarto de bebé em miniatura em que estava incluído um pequeno guarda-vestidos.
Depois de apanhar a roupa seca, como fazia a mãe, ia para a dispensa e com um pequeno ferro de engomar, que lhe tinha sido oferecido pela madrinha num Natal, passar com todo o cuidado as roupinhas. De seguida arrumava-as por uma determinada ordem que só ela sabia a que dias correspondiam a vestimenta de determinada boneca. Para a Mariana, todas tinham um nome.
Quando apanhava a roupa, vestia-se como uma dona de casa quando está a executar os trabalhos domésticos. O pequeno avental que a mãe lhe tinha dado para fazer os seus trabalhos domésticos, assentava-lhe lindamente.
Quantas vezes sua mãe, encostada ao umbral da porta da dispensa, olhava para o jeito que a filha tinha para tratar as roupinhas das suas bonecas. Então imaginava a sua pequena filha já uma mulher a cuidar das suas coisas na sua casa para que o marido se orgulhasse dela.
Muitas vezes sem a pequena Mariana se aperceber, as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo, não por tristeza mas por alegria e por saber que quando a filha fosse uma mulher, iria ser a melhor mãe do mundo. Mal sabia que no futuro, as suas lágrimas iriam ter um sabor tão amargo e muito ainda teria para chorar.
Até o pai, que pouco percebia das lides domésticas, quando vinha cansado do trabalho e entrava em casa, via o seu fruto passando roupa. Ria-se às gargalhadas como uma criança tão pequena já sabia fazer coisas tão bonitas e com um enorme capricho. Quantas vezes não chegou cansado e enquanto esperava pelo jantar que a mulher estava fazendo ia para a cama descansar um pouco mas que nunca conseguia porque Mariana deitava-se em cima dele para lhe contar as conversas que te tinha tido com as suas filhas; quantas vezes não teve que dizer que as saias desta ou daquela boneca eram as mais lindas do mundo para que a sua filha sorrisse de satisfeita e por saber que o pai ouvia tudo o que ela dizia.

Às vezes perguntava-lhe:

- Quando fores mãe vais tratar assim dos teus filhos e ser tão amiga deles como és para as tuas bonecas?

Ela, envaidecida, respondia-lhe com os seus olhos envaidecidos por o pai lhe dar valor e com um tom que até parecia uma mulher crescida:

- Oh pai! Achas que quando tiver os meus filhinhos não os trato melhor que as minhas
bonecas ou pensas que não sei que as bonecas não são como os bebés verdadeiros?

O pai não lhe respondia. Apenas mantinha a boca fechada para sorrir com os olhos. O destino às vezes troca o caminho às pessoas.

XI

Apanhada de supresa com a morte de Celestino, Joaquina, viu-se numa situação que jamais tinha pensado. Ficar sem o marido e ter que tomar conta de tudo, nem pensar. Nunca conseguiria.
Mas, felizmente tinha a Ana Margarida e o seu genro Miguel que de certeza absoluta a iriam apoiar nos negócios todos.
Passado o tempo que considerou necessário para se recompor da perda de quem tanto amava e precisava, entendeu que tinha chegado a hora de alguém ter que tomar as rédeas dos negócios.
Mas antes de o dizer já tinha pensado quem seria, já que o falecido marido nunca naquela casa tinha dito mal de quem era casado com a filha. Logo, quem melhor que o genro.
Além do mais até já tinha consultado a filha, que lhe disse ser Miguel muito competente, um grande administrador e muito trabalhador. Sempre foi desejo do Miguel fazer outros tipos de investimentos. Só não o fez porque tinha receio que o pai não estivesse de acordo.
Reunidos em conselho de família e exposta a situação, com o apoio da filha, que seria a principal interessada em que tudo continuasse como continuou até ao dia em que a infelicidade bateu à porta, estava tomada a decisão. Miguel passou a ter poderes absolutos. Para o efeito dois dias depois, Joaquina, a filha seguiram para o Cartório Notarial para ser feita uma procuração concedendo poderes absolutos para o genro. Miguel, aguardava-as à porta do organismo mais o seu advogado, antigo companheiro da vida nocturna.


Joaquina, durante a noite ainda pensou se haveria alguma alternativa, mas na sua maneira de ver as coisas e segundos os seus argumentos não havia outra saída. E Porquê? Porque, tanto Joaquina como Ana Margarida viveram sempre a leste dos problemas. Alguma vez seriam capazes de pilotar tão grande navio? Entregar a um director? Nem pensar; seria meio caminha andado para começar a roubar aquilo que tanto custou a arranjar.
Não havia outra solução: o Miguel, porque era seu genro e logo um dia pai de seus netos e como marido da filha, jamais seria impossível ele roubar-se ou enganar-se a si próprio como aos filhos.
Muita coisa mudou e muita coisa mudaria. Para o bem ou para o mal, estava escrito nas estrelas. Miguel, viu-se de um momento para o outro, dono de tudo. Ainda inexperiente para receber aquilo que já vinha de duas gerações, as dificuldades não iam ser poucas.
Após demonstrar e ter feito uma jura à esposa em como ia ser capaz de fazer ainda melhor que seu falecido sogro, a primeira coisa que fez após ter em seu poder a dita procuração, foi marcar uma reunião com todos os directores e responsáveis das mais variadas áreas que faziam parte de todo o património da família.
Todos compareceram na enorme sala de reuniões. Quando a sala ficou cheia, a secretária pessoal de Miguel, avisou-o que todos os directores estavam presentes. Levantou-se do ex-gabinete do falecido sogro, com uma pasta e com ar arrogante, talvez derivado ao novo cargo, cumprimentando e sentando-se na grande secretária para iniciar o seu discurso.

O gabinete privado de onde se tinha deslocado era de requintado gosto. As paredes todas forradas de uma fina camada de mogno, escondiam prateleiras embutidas no interior que serviam de arquivo a enormes processos. Um candeeiro que pendia do tecto, dourado com lâmpadas assentes em claustros de cristal; luxuosos cadeirões de couro; uma enorme secretária de mogno. No chão estava uma carpete de Arraiolos, simbolizando temas de pesca e caça; nas paredes quadros de José Malhoa, de Amadeo de Souza-Cardoso e Helena Vieira da Silva.

- Meus senhores e minhas senhoras, os meus cumprimentos e obrigado a todos por aqui estarem. Esta reunião vai ser curta, objectiva e directa. A partir de hoje passei a ser o responsável por todas as empresas e como devem saber: nunca se consegue o êxito ignorando as mudanças, mas sim prevendo-as e adaptando-se a elas, porque a liderança em qualquer empreendimento pode trazer fortes dividendos e, logo a capacidade de liderança, se revelará compensadora.



Para quem conhecia os meandros de tudo como sabia do que Miguel era capaz de fazer, acrescentou para quem quisesse ouvir em voz baixa:

- Vai começar o descalabro de tudo que levou anos a construir.

Não estava, longe da verdade.

- A partir deste momento, se alguém aqui dá ordens sou eu e mais ninguém.
Também a partir de hoje todas mas todas as decisões quem as toma sou eu.
Está encerrada a reunião.

A primeira decisão que tomou foi mandar chamar o seu velho amigo advogado para que de imediato iniciasse todo o processo para que tudo ficasse em seu nome, mas de uma maneira subtil que não tivesse que dar no futuro satisfações ás duas principais interessadas até sabia que tal coisa talvez nunca seria necessário.
A segunda decisão, para Miguel a mais importante, foi dar ordens à secretária, para que fossem despedidos os directores que constavam na lista que Miguel lhe estava colocando nas mãos. Tinha chegado a hora da vingança para com os que o denunciavam ao falecido Celestino.
Nos anos seguintes foram tempos de profundas alterações. Nem os próprios responsáveis como tinham sido feitas e quem era a inteligência que ordenava tais burrices. Só podiam chegar a uma conclusão, quem dava as ordens, uma certeza eles tinham: não percebia nada do que estava a fazer.
Miguel, sentia-se o homem mais feliz da terra e dono do mundo. As suas noites eram passadas em sítios estranhos e com más companhias. Um dia foi à Quinta das Palmeiras, talvez por nostalgia.
Quando se aproximava do rancho de homens que andavam na poda, ouviu um que cantava fados. Então escondeu-se por detrás de um tronco e inicia um despique de vozes. O suficiente para que durante algum tempo todos deixassem de trabalhar para ouvirem os fadistas em plena actuação. Acabada a sessão viram chegar o artista, que não era mais nem menos do que o patrão. Patrão este que até tinha um coração do tamanho do mundo.
Mandou terminar a poda e convidou-os a todos para irem para a adega que o resto do dia ia ser de convívio. Mais desagarradas e mais convívios iriam haver no futuro. Alguns até se transformam em convívios de pesca na margem do rio. Muitas noites foram passadas com mulheres, que no fundo mais não eram do que especialistas em seduzir quem se julgava conhecedor das manhas femininas.
Miguel, nunca tinha tempo para dar atenção a Ana Margarida.

Queixava-se a sua esposa da maldita a hora em que o marido teve que tomar conta de tudo. Não lhe dava carinhos e já não andava tanto com ela como fazia dantes. Apenas uma coisa continuava a fazer: todos os dias mandava valiosas prendas à mulher por intermédio de estafetas. Para ele, era a melhor supresa e talvez, porque não, a melhor maneira de não ter que andar pendurado.
Mas aquele coração do tamanho do mundo dava-lhe força ao Ego. Era saber que algum homem de um dos seus campos tinha alguma dificuldade, alguma operação para fazer por não ter dinheiro, que houvesse algum filho ou filha do mais simples jornaleiro que fosse inteligente mas que não estudava por o pai não poder, a sua carteira jorrava dinheiro para pagar e sustentar. Não era por acaso quando ia a um das suas fazendas que era recebido como um herói. O dia era logo de festa e feriado. Matava-se o melhor borrego ou o melhor porco e num instante tomavam-se as medidas para que estivesse assado. Abriam-se as melhores pipas de vinho e bebia-se até a lua iluminar no Céu. Nunca Miguel se preocupou saber de onde vinha tanta abundância e onde havia tanto tempo para os festejos. Mas gostava, como gostava do fim de cada semana enviar enormes quantidades de dinheiro para pagamento das jornas. Se a alguém poderia faltar dinheiro, nunca seria quem o estimava, tudo fazia e tudo oferecia, mesmo não sendo deles.
Até um astuto e ignorante pastor das suas cabeças de gado, quando o apanhou sozinho, fazer um choraminga que conseguiu-lhe dar a volta, mexendo nos seus sentimentos. Contou-lhe que vivia numa barraca que de barraca só tinha o nome porque quando chovia ou fazia frio, o Inverno entrava-lhe directamente na barraquita. A miséria era tão grande que seus filhos só faziam caminhar para o médico e este dizia que o mal estava na tuberculose que tinham.

- Oh pobre alma, não se preocupe. Quando cá vier terá dinheiro suficiente para comprar um terreno e fazer uma casa diga.

O pastor nem queria acreditar no que estava a ouvir. Para ter a certeza que falava a verdade, perguntou-lhe:

- O patrão era mesmo capaz de fazer uma coisa dessas por mim e pelos meus?

- Está prometido, está escrito!

Cumpriu mesmo a palavra. Era assim Miguel e foi assim durante alguns anos. Até ao dia o gerente de contas, o avisou que as contas bancárias não iam lá muito bem.
Neste momento, o coração de Miguel deu um salto. Pela primeira vez se apercebeu que algo não ia bem.
Durante muitas semanas armou-se em economista e gestor de empresas e por mais contas que fizesse, uma coisa sabia: havia falta de dinheiro, mas em contrapartida, havia muitos bens.
Vendeu muita coisa e com o dinheiro que recebia, pagava os desequilíbrios existentes em caixa como investia naquilo que acreditava.
Alguém um dia lhe disse que o melhor negócio do futuro era as cerâmicas. Desfez-se de imensos bens imobiliários como do Fundo de Acções que o sogro com tanto custo e outras aplicações que tinha e aplicou tudo na compra de velhas cerâmicas que nada valiam como nada produziam. Até duas enormes fábricas de transformação que estavam desactivadas, comprou no Algarve. Sem saber, estava a cavar a sua própria sepultura.

Desde que o sogro tinha morrido, nunca quis pareceres técnicos ou conselhos dos especialistas. Foi preciso começarem a incomodá-lo e a pedir o cumprimento de certos compromissos, que então se lembrou de convidar um velho amigo desempregado, mas considerado por ele como um dos melhores economistas da praça, para que o ajudasse. Deu-lhe poderes para inverter o que estivesse mal e corrigisse os erros que existissem.
Em vez do gerente de contas, foi o gerente do banco como outros gerentes de vários bancos que começaram a aparecer e a incomodar. Miguel começava a sentir-se mal com esta situação.
Nas poucas noites que ia cedo para casa, nem atenção dava à sua esposa. Levava noites sem dormir, fazendo com que Ana Margarida desabafasse com a mãe. Esta ficou preocupada e aconselhou a filha a ter cuidado com as roupas e os cheiros dos perfumes, não houvesse alguma mulher pelo meio dos dois, quando devia era preocupar-se em saber como iam os negócios.
Ao fim de cinco anos, uma coisa era certa: tudo estava reduzido a um quarto do daquilo que tinha recebido de mãos beijadas do sogro. Como e porquê, nunca conseguiu entender e muito menos descobrir como nunca se preocupou em saber que tinha acesso aos movimentos da caixa central da tesouraria de todas as empresas. Se o fizesse até era mais uma preocupação e preocupações para quem gostava de gozar a vida, mais não era do que um incómodo, e dos grandes. Aliás achava um desperdício tal coisa. Nem tinha necessidade, porque uma coisa era verdade: nem a mulher nem a sogra tinham conhecimento da situação. Muitas vezes até dizia para si próprio; que continuava a ser cabeleireiro cuja profissão dava rendimentos para sustentar mulher e filhos.
Como menos preocupações e ainda com um quarto do bens que lhe restava, conseguia acima de tudo ter menos problemas, como viver dignamente e continuando a não faltar quem tanto amava como a ter meios para dar uma mensalidade à sogra para ter uma vida digna e nada lhe faltar relativamente à vida que te tinha tido e continuava a ter. Joaquina nunca foi mulher de grandes gastos - talvez pelo espirito de poupança que seu falecido marido lhe incutiu. Também nunca se preocupou com a administração da casa. Para isso estava lá a ama de Margarida, que continuava a dividir os seus préstimos pelas duas casas.

Mas se alguém sabia amar, era mesmo Miguel. Que o digam as mulheres que estiveram debaixo dos lençóis com ele, especialmente aquelas, que conseguiram ficar com os apartamentos em que passavam momentos de loucura. Foram estas que lhe ensinaram a frequentar a zona do Estoril para o habituarem a estar até de madrugada nas mesas de pano verde. Um vicio que não tinha., tornando-se no caminho da sua desgraça.
A sua fraqueza eram as belas mulheres que frequentavam o interior dos salões, perfumadas de odores estonteantes e longos vestidos com grandes decotes e fios enlaçados com pérolas e diamantes caríssimos. Se alguém ganhava com o que via, era a Ana Margarida, porque Miguel queria que a esposa andasse e vestisse como as mulheres da noite.

XII

Mais ou menos normalizada a situação, mesmo que altamente reduzida, coisa que pouco preocupava Miguel, já que nunca foi defensor de coisas materiais. Sempre foi defensor que as pessoas apenas deveriam ter apenas o suficiente para viver dignamente e nunca, serem escravos da ganância como do dinheiro.
Pelo que passou, que o fez envelhecer um pouco, uma coisa conseguiu: ter mais tempo para a mulher e fazer aquilo que gostava como começar a fazer o que fazia quando conheceu a esposa: visitar livrarias.
Da bonança, que lhe tirou anos de vida, restava-lha ainda três apartamentos no Algarve, que nunca se desfez deles por estarem situados em zonas que no Verão e que lhe davam uma boa fonte de rendimentos e poucas despesas, para além de: servirem como garantia para alguma fatalidade que vida lhe pudesse oferecer.
Para quem em poucos anos conseguiu desbaratar uma enorme fortuna constituída pelas mais diversas fontes de rendimento, estes apartamentos eram razões suficientes para que um dia os filhos pudessem ter uma vida digna.
Escolheu a cidade de Lagos para passar um mês de férias com a esposa, sogra e a ama. Esta última, é que não podia faltar porque as outras duas nunca souberam fazer nada no que se refere às lides domésticas. Importante era também a fidelidade da ama que ajudou a criar a esposa praticamente desde miúda a sua mulher.
Tinha três virtudes: era cega, surda e muda. Fingia não ter ver o que tinha visto, não ouvia e que diziam e não falava aquilo que devia falar. Por ter estes defeitos, muitas vezes andava nas duas casas que ninguém dava por ela. Um diamante que todos estimavam porque era um peça de mobiliário da casa.

Quando chegaram no fim da manhã à cidade do Barlavento, depois de distribuído e arrumado o necessário que tinham trazido, foram os três almoçar num dos imensos restaurantes que a avenida têm. Às vezes o problema da escolha não estava na quantidade mas sim na qualidade.

Para a digestão do almoço, uma longa caminhada. Atravessavam a ponte que junta a avenida ao Cais da Marina para irem tomar o café.
Uma ponte que se abre ao meio, quando é preciso entrar ou sair algum dos barcos de recreio. Enquanto saboreavam o café, que ás vezes durava horas, olhavam para os grandes iates que estavam ancorados com as bandeiras dos seus países, dando um aspecto multicolor ao ancoradouro. Viam as pessoas a andarem de um lado para o outro, viam quem entrava e saia da Marina e quem saia com este ou com aquele barco. Coisa que Ana Margarida adorava fazer.

Levavam tardes sentados na esplanada de uma pastelaria, que fabricava os doces mais conhecidos do Algarve, a verem todo o movimento das pessoas. Nos edifícios luxuosos e rodeados de água que faziam parte do espaço marítimo, algumas lojas vendiam de tudo.
Até as palmeiras nos dias de vento faziam com que a Marina de Lagos fosse uma espécie de oásis do deserto, pela vista que tinha para com a Meia Praia.
Antes de saírem para ir dar a caminhada obrigatória, obrigatório se tornava, passarem pelo cais oposto à avenida, porque ver a cidade de frente, era simplesmente algo de espantoso. Então nas noites de luar, ver no lado contrário toda aquela confusão de pessoas e de luzes, tornava o local numa luxuriante aventura.
Atravessada novamente a ponte, começavam a digressão obrigatória com a companhia da ria que recebe o mar e acaba para os lados de Bensafrim. Ladeada por grossas e velhas palmeiras ao longo da avenida, seguiam em passos lentos apreciando toda a confusão que só uma grande cidade sabe oferecer.
Crianças a andarem de trotinetes; cicloturistas fazendo a sua manutenção; jovens estrangeiros com as mochilas às costas correndo para apanhar o comboio; os mais idosos passeando os seus caezinhos; veraneantes fazendo o que eles estavam fazendo; centenas de pessoas sentadas na beira da longa muralha que serve de barreira da ria para com a terra; pequenos quiosques onde os empregadas e as empregadas explicavam a quem passava que podiam ir visitar as grutas de bote ou à pesca em barcos apropriados de tudo.
Um passeio que só terminava junto do Forte de Lagos, onde um pouco mais à frente, se encontrava o velho cais que um dia serviu de posto de atracação para os barcos descarregar pela madrugada o peixe que apanhavam durante a noite.
Depois atravessavam a avenida para se sentarem um pouco nas proximidades da estátua de Infante D. Henrique.
Apreciavam a beleza das velhas muralhas do castelo e do jardim para depois seguirem pela rua mais sinuosa e movimentada da cidade. Uma visita obrigatória que tinham que fazer era ver os quadros que estavam expostos no antigo Mercado de Escravos.
O barulho que vinha de dentro dos bares, as centenas de pessoas que subiam ou desciam a rua como a confusão de línguas que se ouvia era uma fascinação para os dois. Chegados ao largo onde a estátua do Rei D. Sebastião onde era ponto de encontro obrigatório, para quem queria se encontrar ou andava perdido no labirinto das ruas e ruazinhas da cidade.
O percurso seguia pelo lado oposto ao que já tinham palmilhado para fazerem a paragem obrigatória num estabelecimento de gelados. Era paragem obrigatória. Aqui era o local onde as crianças davam cabo da carteira dos pais, como: o sitio em que uma vez por ano se podia saciar os desejos opostos da elegância feminina. Sentavam-se num dos muitos bancos existentes no largo frontal da estação dos correios para saborearem os vários aromas que estavam protegidos pela doce bolacha.
Ao mesmo tempo, viam a enorme azafama de pessoas que repetiam, dia após dia, noite após noite, sempre a mesma coisa. Viam as palhaçadas e os homens estátua; o homem que deitava lume pela boca; os Peruanos que tocavam musicas perdidas na memória do tempo; viam os petizes enfeitiçados com brinquedos luminosos que os vendedores ambulantes vendiam; miravam os relógios de marca, quase todos de imitação, que os marroquinos vendiam.
Acabado o prazer, levantavam-se e continuavam a caminhada para irem vendo as montras, que no seu interior mostravam aquilo que nem todos podiam comprar. Chegados ao local onde tinham partido, entravam para o apartamento e descansavam um pouco.
Às noites, tudo se repetia.
Nos dias seguintes, iam pelas dez horas, para a Meia Praia, praia que muito inspirou Sofia de Melo Breyner Andresen como seu filho Miguel . O mar da Meia Praia era especial. Caminhar ao longo da praia de manhã era obrigatório. A meio da tarde, passeavam pelas muitas dunas existentes Quantas vezes, no meio das mais altas, não fizeram amor? Como sabia bem amar e ser amado em cima dos grãos de areia escaldantes pelo calor que os embrazeava.
Aos fins das tardes, outro passeio se tornava obrigatório, para poderem apreciar os efeitos da bola de fogo que aos poucos começava a desaparecer no horizonte. Esta prenda da natureza deliciava os apaixonados.

Terminadas as férias regressaram à cidade ribatejana para tudo continuar, apenas mudando a duração do ciclo da vida.

As férias dão repouso e momentos de reflexão. Foram num destes momentos que Miguel entendeu ter chegado o momento de contar à esposa e sogra que as coisas já não eram o que foram.
Escolheu o dia apropriado para dar a triste novidade. O jantar que fora feito pela ama, deu motivos para se recordar de todo o passado como das dificuldades da vida e as contradições que esta dá, muitas vezes sem as pessoas esperarem.
Conseguiu disfarçar o nervoso que tinha e numa linguagem de moralista conseguiu abrir caminho para as suas palavras e motivos fossem compreendidos como toleradas por quem sentiu o mundo desabar.
A sogra chorou tanto que secou as lágrimas como Ana Margarida. Palavras duras e de raiva ouviu de quem sempre confiou nele e nele tinham depositado toda a confiança. De tanto ouvir palavras que nunca tinha imaginado ouvir, os seus sentimentos de culpa e de ter falhado, comoveram-no de tal forma que chorava como uma criança. Soluçava e já não era capaz de falar. Sabia e reconhecia que tinha falhado como sido um pulha, mas o mal estava feito, que mais fazer ou dizer?
Nunca o tinham visto assim, como nunca tinham visto um ser humano tão humilhado. Mandaram-no ir para a cama por pensarem que para complicar mais as coisas, ainda lhe daria algum fanico.
Ficaram sentadas toda a noite para acabarem por ter que aceitar os factos. Ficou assente que dali para o futuro tudo o que fosse feito como tudo o que acontecesse, as duas tinham que saber e dar a sua aprovação. Foi a melhor coisa que decidiram na vida. Garantiram a sobrevivência e a dignidade do resto da sobrevivência como garantiram o futuro de mais alguém.
Só o tempo faz esquecer. Passado algum tempo, era como nada tivesse acontecido. Mas o passado ia corroendo Joaquina, que nada dizia aos filhos mas tudo pensava. Lembrava-se que Celestino, conseguiu arranjar como do que sofreu para manter e aumentar a fortuna pessoal, para agora estar reduzida a fanicos.
Estes pensamentos atormentaram a viúva de tal forma, que um dia sentada no cadeirão da sua sala caiu para o chão e ficou imóvel. Valeu-lhe estar por perto a sua velha companheira que de imediato ligou para o 112. Um AVC tinha tornado Joaquina numa inválida para ao mesmo tempo a condenar a estar os restos dos seus dias sentados numa cadeira de rodas dependendo de alguém que a acompanhasse. A boca de Joaquina fechou-se para sempre, excepto: quando recebeu a noticia da melhor prenda da sua vida ou quando falava para dar algum desabafo para quem, tudo via, ouvia, mas não nada dizia. Uma coisa que Ana Margarida, no fundo da sua alma nunca perdoaria a Miguel, já que foi o causador de tudo.

- Miguel, Miguel, que fizeste à minha mãe? Dizia muitas vezes para si própria

Poucos meses depois, numa tarde de um domingo ainda quente, o casal foi passar a tarde ao centro comercial para ver as montras, já que estas estavam a sofrer alterações pela nova estação que se aproximava.
Sem saber como, Ana Margarida sentiu uma pequena tontura que teve que amparar-se a uma das paredes dos enormes corredores que existiam. Miguel assustou-se de tal maneira que o passeio acabou logo. Alguns dias depois quando estavam sentados na mesa para jantar e saborearem o Peru no Forno que era o prato favorito de Ana Margarida, feito pela ama. O aroma incomodava tanto quem tanto adorava este prato. Nunca a ama se sentiu tão ofendida por ter ouvido da boca da sua menina que o peru não estava arranjado como nas outras vezes. Uma ofensa para quem o cozinhou. Nunca se tinha aprumado tanto numa refeição como esta. Ouvir da boca de quem tanto gostava e admirava por se ter feito uma mulher, só podia ter uma razão: o desgosto que o vadio do marido lhe tinha dado.
Situações que voltaram a repetir-se, fazendo com que Miguel a tivesse levar á força ao médico da família. Quando o médico ouviu tudo o que tinha acontecido fez um sorriso de quem já sabia o que pensava. Como bom profissional que era não disse nada e mandou-a fazer algumas análises e exames.
Obtidos, foram os dois ao consultório mostrar os resultados. O resultado só podia ser aquele que o médico já desconfiava. Ana Margarida estava grávida. Nunca o médico tinha visto uma paciente como a que tinha na sua frente. Saltos, beijos e abraços, obrigaram a que o clinico tivesse que sair do consultório porque nem estava a acreditar no que estava a ver.
A partir da noticia muita coisa mudo. Já decorriam sete meses de gravidez quando Ana Margarida um dia acordou e se apercebeu que algo não estava bem. Não sentia o lado direito da cara. Levantou-se para ir à casa de banho e quando se viu ao espelho

- Meu Deus! Que me aconteceu? Tenho a boca de lado, o olho torto, corre-me um fio de água pela face. Que tenho meu Deus......que me aconteceu?

Passou com a mão pela cara, beliscou-se e nada sentia, Estava insensível a dor.


- Que vai ser de mim e de quem tenho dentro da minha barriga?

Voltou para o quarto e acordou Miguel. Este quando a viu, sentiu o chão a fugir-lhe debaixo dos pés. Enquanto se vestia pediu à esposa que também o fizesse. Meteu-a dentro do carro e seguiu como um louco a caminho do hospital. Por sorte, quando chegou à Urgência, estava a obstrecta que vinha acompanhando a gravidez de Ana Margarida, de serviço. Mal a olhou, soube logo que estava na presença de uma paralisia facial.

- Acalme-se Ana Margarida, que não é nada de grave. O que tem é apenas uma
paralisia facial. Em nada vai agravar a gravidez e muito menos o bebé

Os restantes meses foram passados numa tremenda angústia. Só acabou quando nasceu no inicio de mil novecentos e noventa, a menina mais linda do mundo. Matilde foi seu nome ( Matilde, vem do germânico “ Math” e “Hild” o que representa “força e coragem” ).

Afinal, qualquer fantasia tem valor, seja falsa ou verdadeira. O que importa é que o amor enche a vida inteira.

Mesmo com a deficiência, foi uma alegria. Feliz de ser mãe e ter nos seus braços o que esteve durante nove meses dentro da sua barriga fazia com se sentisse a mulher mais feliz do mundo. Miguel não se sentia um homem babado, sentia-se uma autêntica criança.
Tudo fazia para que nada pudesse acontecer aos dois. Nada podia faltar-lhes. Demonstrou que para além das asneiras que tinha feito, sabia ser o melhor pai do mundo e um marido exemplar. Em parte estava perdoado pelo mal que tinha feito.
A sabedoria de um neuro-cirurgião fez em poucos meses maravilhas na cara de Ana Margarida. De tal forma, que poucos meses já saia à rua com o seu bebé na companhia de seu marido que não a largava por nada deste mundo, depois de ter perdido os complexos da «cara horrível» que tinha, após tanto estímulo ter levado e de ouvir que era a mulher mais bonita da terra.

XIII

Os hábitos adquiridos ao longos dos anos, o tempo livre que tinha e a possibilidades de poder voltar a comprar as roupas que sempre gostou, mesmo quando que a situação económica não fosse o que tinha sido, dava para manter o nível de vida que se habituou. Continuou a ser uma visitante constante do espaço. Passava tardes inteiras com Matilde no carrinho de bebé, pouco se preocupando com quem se cruzava ou lhe seguia o percurso, salvo quando via alguém conhecido, que com a educação que tinha recebido, cumprimentava sempre. Nunca perdeu o hábito de não tomar em atenção os pormenores ou as pessoas que a cercavam.

Seu marido continuava a ser ávido de livros e não perdia lançamento de nenhuma obra, para além de nos fins-de-semana ser também um frequentador do emblemático espaço comercial que de tudo tinha para além do conforto e qualidade de pessoas que utilizavam o Centro Comercial.
Já conheciam todos os cantos à casa e sabiam a localização de cada loja mas não sabiam no dia em que foram todos juntos ver o escritor que estava presente para o lançamento de uma história de paixão e intriga que os seus passos estavam a ser seguidos por alguém.
Habituada a ter sempre o que queria e gostava, quando ia a caminho do evento, viu numa montra um casado para a estação fria que a encantou.
Convidou-o a ir com ela só um minutinho ver o mesmo e saber o preço para quando regressassem o comprasse, ou: recebê-lo como mais uma prenda de quem tudo lhe dava. Como era só um minutinho, deixou o carrinho à porta e quem nele dormia para apreciar o que tanto lhe tinha chamado a atenção.
Não sabiam explicar como o carrinho e Matilde tinha desaparecido, numa fracção de segundo, que nem o Vento conseguia ser tão rápido.
Olharam um para o outro sem falarem para de seguida verem as pessoas que estavam na zona. Não era possível que estivesse a acontecer com eles. Quem teria levado a Matilde? Seria alguma brincadeira de mau gosto ou alguma partida de alguém conhecido?
Fosse o que fosse, não se fazia. Uma mãe e um pai, ter a certeza que deixou a filha na porta da loja para desaparecer de seguida, não era possível e muito menos verdade.
Gritos profundos e loucos, lágrimas de raiva e culpa; palavras sem nexo; uma confusão maior que a Babilónia; o alvoroço das pessoas de ouvirem uma mãe com a voz rouca e com a cara toda molhada, gritando pela Matilde; a dizer que lhe roubaram a sua bebé, todos pensaram que o mundo tinha acabado naquele momento.
O barulho e a aflição de todos levaram com que centenas de pessoas se pusessem a correr por tudo que era zona comercial. Foi os gritos de aflição que alertou a segurança interna que imediatamente meteu em funcionamento o escondido circuito televisivo interno e a alta tecnologia instalada por todo o edifício. Alguém no parque de estacionamento subterrâneo tentava meter à força no interior de um automóvel algo de muito estranho.
Bloqueada a saída, Mariana, a mãe que não podia ser mãe devolveu à verdadeira mãe, aquilo que lhe pertencia.
XIV
No presente
Miguel e Ana Margarida, vivem uma vida confortável e desafogada, porque Miguel tornou-se num verdadeiro homem responsável. O que restou, continua sólido, como rentável, dando os seus lucros, que não são poucos, para ser investidos noutras áreas, mas geridos de outra forma, para quando Matilde for adulta possa ter um bom futuro. Joaquina, continua a contar com a companhia e apoio da velha ama, que um dia quando a contratou para educar e proteger a sua filha, nunca pensou que vinha a precisar da sua protecção. Mariana, arrependida do acto tresloucado que cometeu, cumpre numa prisão a sentença do tribunal .
Para a Ana Margarida e Miguel, hoje, grandes espaços ou confusões nem vê-los, porque um dia alguém desejou, cobiçou e tentou roubar aquilo que mais de querido há neste mundo: uma filha.
Por: António Centeio
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